Rádio Astral

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Um estranho fenômeno vem acontecendo comigo há já um bom tempo. Acordo todos os dias ao som de uma melodia qualquer e me pego tentando decifrar de onde ela vem: de fora ou de dentro? Isto é, estaria o som flutuando só na minha cabeça ou existiria alguma fonte externa identificável para ele?

Inicialmente, imaginei que as canções que eu “ouvia” teriam vazado durante a madrugada do apartamento de baixo, onde minha vizinha costuma organizar festas e encontros com amigos, sempre regados a muita conversa e cantorias animadas. Podia ser também que essa esquisita parada musical fosse proveniente do radinho de pilha do porteiro do condomínio, às voltas com a necessidade de afastar o tédio e o sono das madrugadas. Abria a janela, olhava para todos os lados procurando identificar de qual direção o som poderia estar vindo, mas sempre em vão. Nunca descobri nenhuma pista segura.

Aos poucos, fui entendendo que teria de procurar na minha mente os gatilhos para esse exótico desfile musical. Teria sido um sonho? Mas, se fosse, por que não havia na minha cabeça nenhuma lembrança, nenhuma imagem, nenhuma sensação, nenhum contexto emocional capaz de explicar satisfatoriamente a emergência da trilha musical? E, mais intrigante ainda, qual seria a mensagem que meu inconsciente estava tentando me mandar?

O que mais me impressionava nesse sentido era a imensa variedade de ritmos, estilos musicais e das épocas que ficaram marcadas por eles. Podia ser uma valsa, um tango ou bolero, uma modinha interiorana, um samba-canção do passado, uma dessas músicas-chiclete dos dias de hoje que não saem mais da sua cabeça por mais que você as rejeite, um ‘hit’ sertanejo ou de sofrência, funk ou reggae, música de Carnaval, Natal ou de festa junina, algo no estilo bossa nova, MPB ou de axé-music. Era como se eu estivesse rebobinando mentalmente a fita que continha a história da minha vida baseada apenas em seu fundo musical.

Ao longo do tempo, outras canções e estilos preferidos vieram se juntar aos do repertório popular brasileiro. Ainda deitada e de olhos fechados, eu tentava rememorar a letra de cada melodia e me emocionava com a capacidade de recuperar as emoções provocadas por antigas canções francesas e antigos sucessos das divas americanas do jazz, soul e blues que marcaram minha adolescência. Logo foram entrando em cena, sem pedir licença, também músicas folclóricas, hinos pátrios que eu era obrigada a cantar na escola e até hinos religiosos, que incluíam as músicas de procissão que minha mãe me forçava a acompanhar em criança.

O maior susto veio quando acordei um dia cantarolando a ária Nessun Dorma, trecho da ópera Turandot de Puccini. Nunca me interessei muito por música clássica e mal podia reconhecer as grandes obras da categoria e seus autores mais famosos. Também não conhecia a letra e não compreendia as expressões italianas. Corri para o computador e busquei freneticamente o libreto para tentar entender a história nele contada e os significados que eu poderia derivar para meu momento de vida atual. Apesar de tê-la considerado muito instigante, não fui capaz de compreender a ligação entre a tirânica princesa chinesa e a princesa adormecida que me habita, ambas ordenando que ninguém durma até que o segredo seja revelado.

Ontem, para meu igual espanto, acordei repetindo, mesmo sem saber por quê, os versos em latim de uma música com forte conteúdo patriótico que cantávamos na escola, durante o curso ginasial: Deus salva América de hostibus/Cuncta bona ei dona in malorum fluctibus/Nos rogantes et clamantes inter carmen discimus/Deus salva América, Amééricaa…

Mais uma vez, ‘dei um Google’ assim que me levantei para saber se minha memória havia sido capaz de preservar fielmente a letra original. Não a encontrei em nenhum site ou blog. Havia apenas referência ao fato de que essa música é considerada uma espécie de hino não-oficial dos Estados Unidos e que havia uma versão em inglês da letra, escrita por Irving Berlin em 1918.

Fiquei atônita. Jamais me ocorreria pensar que nossos professores de canto tivessem nos apresentado a uma canção patriótica estrangeira, sem se preocuparem em nos informar com clareza sobre sua origem. Ainda mais pasma, descobri que havia uma versão em português da mesma música escrita por João de Barro (e cantada por Francisco Alves) em 1945. Mas, me perguntava atordoada, se tivemos de decorar uma letra em latim, ela devia ser forçosamente muito anterior à versão americana – e, portanto, tratava-se de uma composição de autor desconhecido que havia sido apenas encampada pelos Estados Unidos, graças à mania de se considerarem única referência de América (e não o continente como um todo).

Preciso fazer um parêntesis para explicar de que forma a música moldou minha personalidade ao longo da vida. Quando criança, era forçada a ouvir quase que exclusivamente música instrumental, tocada por uma grande orquestra ou por um pianista famoso, que meu pai adorava. Admito que aquilo me entediava bastante. Sempre senti falta das palavras. Acompanhar – e ser capaz de entender – a mensagem contida na letra era minha grande paixão. Foi em nome dela que me interessei pelo aprendizado de línguas estrangeiras. Ao longo de minha adolescência e começo da vida adulta, passava horas a fio ouvindo o mesmo disco e anotando às pressas como podia as palavras que decifrava. Depois, com o auxílio do dicionário, ia juntando uma palavra a outra, até que as frases começassem a fazer sentido.

É inegável que a arte, em todas as suas formas, é a única ferramenta com que podemos contar para refletir em profundidade sobre a condição humana e transcender todas as limitações que ela impõe. A linguagem musical é universal no que tange às emoções que desperta. Não há fronteiras nacionais, credos religiosos ou políticos que possam interromper o fluxo associativo de pensamentos, sentimentos e estados de espírito que emergem diante de cada frase musical. Pensando nisso, resolvi deixar de lado tanto esforço para compreender o conteúdo emocional despertado pela melodia que me acorda a cada dia. Navegar com prazer e deixar-me levar sem o uso da razão pela forma delas passou a bastar-me.

Foi então que me ocorreu um insight. Se podemos simbolizar numa melodia todos os acontecimentos relevantes de cada fase de nossas vidas, qual seria a música-tema universal mais representativa deste dramático ano de 2020? E, mais especificamente, que fundo musical poderíamos atrelar iconicamente aos terríveis eventos pandêmicos, climáticos, econômicos, sociais e políticos brasileiros?

Façam suas apostas. A minha lista das canções concorrentes ao título já está pronta. Acredito piamente que o plano astral está nos convidando – nada gentilmente, diga-se de passagem – a nos despedirmos da vida no planeta Terra tal qual a conhecíamos até aqui, bem como a superarmos a era do ódio às diferenças para podermos adentrar finalmente novos tempos de reconciliação com a natureza ambiental, com a natureza humana e com a natureza espiritual. Quem sabe, relembrando ou compondo novas músicas sejamos capazes de elaborar novas utopias que nos guiem com segurança e harmoniosamente pelo fantástico universo apocalíptico do século 21.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.