Os primos ricos

Manchete de O Globo

José Horta Manzano

Há quem diga que boxe, uma variante do soco-inglês, não é esporte, é resquício de briga de neandertais. Há quem diga que nado artístico não é esporte, é balé. Há quem diga que hipismo não é esporte, pois quem dá duro é o cavalo, não o homem. Há ainda quem diga que skate (ou esqueite, forma ignorada, mas que aparece no dicionário) também não é esporte, que é brinquedo de pré-adolescente.

Seja como for, todas essas modalidades são reconhecidas pelo Comitê Olímpico Internacional e têm o direito de aparecer nos Jogos Olímpicos. Portanto, se reclamações há, não briguem comigo. Convém escrever uma cartinha para o Comitê, sediado em Lausanne (Suíça).

Falando em Lausanne, é cidade pela qual tenho carinho, por ter lá passado meus verdes anos. Mas isso já faz muito tempo e não vem ao caso neste momento.

A manchete que reproduzo acima me deixou um tanto surpreso. Informa que o COB, entidade encarregada de supervisionar o esporte olímpico no Brasil, planeja injetar mais dinheiro no skate. O mistério dessa lógica me parece difícil de desvendar.

Metade das 6 medalhas de prata do Brasil foram conquistadas por skatistas. Com ou sem dinheiro do COB, esse esporte já desliza sozinho sobre suas rodinhas. Acho que o Comitê devia mais é se preocupar com os parentes pobres, aquelas modalidades em que nossos atletas tiveram participação modesta ou nula.

No atletismo, há dezenas de modalidades em que nenhum brasileiro participou. No ciclismo, idem. Há ainda a escalada, a esgrima, a ginástica acrobática, o tiro esportivo e com arco – cada um deles comportando diferentes modalidades.

Se o COB, além de colher os louros da vitória, tem real intenção de trabalhar pelo desenvolvimento do esporte no Brasil, devia cuidar dos parentes esquecidos, não somente dos primos ricos.

De bicicleta

José Horta Manzano

A queixa mais recorrente que se faz contra homens públicos é a de se dedicarem mais a benefícios pessoais e menos ao interesse da população. O modo de agir de grande parte dos representantes do povo é, de fato, desleal. Eleitos que foram para cuidar do bem comum, desvirtuam-se. Uma vez instalados nas confortáveis poltronas das casas legislativas, mandam para escanteio o interesse dos eleitores e passam a cuidar dos próprios.

Um exemplo atualíssimo é a reticência dos parlamentares em promover reformas no sistema previdenciário. Toda pessoa de bom senso, com um mínimo de informação, consegue entender que, do jeito que está, a regra atual não tem condições de se sustentar. Nem a médio prazo. É falência certa, débâcle pela qual todos pagarão: ativos e aposentados, válidos e inválidos, ricos e pobres.

Apesar dessa evidência estatística, suas excelências resistem. O interesse eleitoral imediato de cada um prevalece sobre o bem comum, hipotecando o futuro dos cidadãos. Se trancam a pauta e sonegam o voto, não é por convicção nem por ideologia. Respondem apenas à mesquinha estratégia de passar por simpáticos e assim aumentar a chance de reeleição.

O exemplo vem de cima. Queiram ou não, o comportamento das excelências que nos governam dá o tom. Desvios de conduta lá em cima incentivam atitudes tortas cá embaixo. Fica difícil exigir do zé povinho um comportamento aprumado quando a safadeza de figurões frequenta quotidianamente a mídia.

Estes dias, tornou-se pública a informação de que um cidadão, interessado em conquistar a coroa de recordista mundial de rapidez em bicicleta, conseguiu a impressionante façanha de circular em velocidade superior a 200km/h. O fato se deu no Paraná em novembro último. Parabéns ao campeão. Mas.. como é que ocorreu?

BR-277 sem espetáculo ciclista

Para atingir o recorde, não havia outro meio senão correr no vácuo de outro veículo. O governo do Paraná e a Polícia Rodoviária Federal se acumpliciaram para dar uma ajudazinha ao rapaz. Passando por cima do interesse dos usuários, autorizaram o fechamento de longo trecho de uma rodovia federal. O “espetáculo” teve lugar na BR-277, importante via expressa que liga Curitiba ao litoral. Em plena luz do dia, o tráfego foi interrompido ‒ nos dois sentidos ‒ por longos 20 minutos.

O poder público não se comoveu com a aflição do honesto cidadão que tivesse de apanhar um avião no aeroporto nem com o desespero da mulher prestes a dar à luz que não tivesse outro caminho para a maternidade. Tampouco pensaram em ambulâncias, veículos de bombeiros ou viaturas policiais que porventura tivessem premência de circular por ali. Sem mencionar o contratempo causado aos demais usuários, que são, ao fim e ao cabo, os que pagaram pela construção da estrada e continuam pagando pela manutenção.

Ainda falta muito para o dia em que o interesse público primará sobre conveniências pessoais.

Nota 1
Segundo o locutor televisivo que comentou o “evento”, faz tempo que esse ‘campeão’ ciclista foi banido de competições regulares por motivo de dopagem. Eis por que se dedica a outro tipo de espetáculos. Ficam aqui nossos parabéns às autoridades que patrocinaram a pavonada.

Nota 2
Tanto o recordista quanto as dezenas de veículos que o acompanhavam no eletrizante show circularam em flagrante excesso de velocidade. Não há registro de que algum deles tenha sido multado. Pontos na carteira? Isso é pra nós, que somos menos iguais.