Estocada e fuga

José Horta Manzano

Obras 3Numa noite paulista da semana passada, uma moça dirigia seu automóvel. O céu estava escuro e a moça… embriagada. O que tinha de acontecer aconteceu. Atropelou dois homens que, em plena jornada de trabalho, cuidavam da pintura de sinalização no solo.

O estado em que ficou o carro prova que o choque foi violento e sugere que a velocidade fosse elevada. Apesar disso, a moça não se feriu no acidente. Contrariando todas as regras que a humanidade teceu desde que o primeiro hominídeo desceu da árvore, ela reagiu de modo torpe: abandonou o local às carreiras, sem se preocupar em prestar socorro aos que havia ferido.

Os dois homens morreram. Depois de duas noites presa, a automobilista foi acusada de homicídio não intencional e liberada sob fiança. Em liberdade, vai aguardar o julgamento.

Primeira consideração
Obras 2Em terras mais civilizadas, onde a vida humana tem mais valor que para-brisa estilhaçado, o desfecho teria sido diferente. Motorista que, em estado de embriaguês, atropela – e mata! – é considerado homicida intencional. Parte-se do princípio que, ao pegar no volante em estado de ebriedade, o piloto assume o risco de causar acidente.

E tem mais. Omissão de socorro já é passível de punição. Não socorrer vítimas de sua própria negligência é ato muito pior. Portanto, a moça seria acusada de homicídio doloso agravado por fuga da cena do crime e omissão de socorro a suas próprias vítimas. Aguardaria um bom tempo atrás das grades até que um júri decidisse sobre seu destino.

Acidente circulacao 3Segunda consideração
Imaginemos a cena ao contrário. Suponhamos que a moça estivesse trafegando de carro quando um operador de retroescavadeira, trabalhando sob efeito de álcool, fizesse um movimento brusco e abalroasse o automóvel.

Conjecturemos ainda que o carro, desgovernado, batesse num poste, e que a motorista se ferisse gravemente. Imaginemos que o operador da máquina abandonasse a cena do crime e fugisse imediatamente. Que aconteceria?

É impossível garantir como teria sido o que não foi. No entanto, é plausível que o operário fosse caçado, enjaulado e acusado de homicídio intencional. Pode-se imaginar que não lhe fosse sequer oferecida a possibilidade de comprar a própria liberdade por meio de pagamento de fiança.

Será que estou exagerando?

Obras 1Conclusão
Enquanto abutres se engalfinham no andar de cima disputando o butim de corrupção e de malversações, os cidadãos comuns perpetuam a tradição esquizofrênica de nossa sociedade. O 13 de maio não passa de dia comemorado nas escolas. Seu espírito ainda não foi assimilado pela população.

Sociedade civilizada é aquela que protege seus membros mais frágeis. Atenção: esmola não conta! Falo de mudança profunda de atitude. Ocorrências como essa provam que ainda falta muito.

PT ou BR

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 jun 2015

Ortografia 2Dia 13 de maio, comemoramos a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão oficial e entrou para a hagiologia nacional. Em Portugal, o 13 de maio celebra a Virgem de Fátima. Este ano, porém, um clamor quase empanou o fervor. É que, justamente nesse dia, entrou oficialmente em vigor, em terras lusas, a grafia determinada pelo Acordo Ortográfico alinhavado em 1990 pelos integrantes do clube lusófono.

No Brasil, a resistência ao AO90 foi pouca, não passou de protestos frouxos. O adiamento da entrada em vigor, programada agora para o fim deste ano, nem tinha razão de ser. Na prática, Inês é morta: a nova grafia já mandou a antiga às favas.

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

Mais do que pelo sol tropical, o brasileiro tem o couro curtido pelas lambadas que levou ao longo dos séculos. Revoluções, golpes de Estado, implantação e supressão súbita de leis, reviravoltas políticas repentinas e constantes, insegurança jurídica causam aflição crônica. Com paciência beneditina e resignação bovina, aprendemos a engolir pronunciamientos e a lidar com eles. Dançar conforme a música não é, entre nós, mera figura de estilo.

Calejados por sucessivas reformas ortográficas, não opusemos grande resistência a essa enésima modificação. O que mais nos incomoda é o pouco tempo que tem decorrido entre remodelações. Pessoas que, em 1990, tinham 55 anos ou mais viram-se obrigadas a aprender a escrever pela quarta vez! Alfabetizadas pela antiga grafia pseudoetimológica, já tinham sido forçadas a se adaptar à reforma de 1943 e à de 1971. A de 1990 amolava, sim, ainda que o desconforto não se tenha convertido em rebelião.

Orthographia 1Já em Portugal, a perspectiva de alterar hábitos de escrita encontrou oposição vigorosa. A resistência não se prendia aos mesmos motivos que provocavam mau humor no Brasil. O problema estava mais para orgulho ferido que para simples aborrecimento.

De um século para cá, houve numerosas tentativas de harmonização da escrita entre Brasil e Portugal. Nenhuma vingou. Em 1907, a Academia Brasileira de Letras propôs novas regras, que não foram seguidas nem mesmo no Brasil. Em 1911, Lisboa alterou profundamente a escrita – mas a novidade só valeu para Portugal. Em 1931, nova tentativa de aproximação gorou. O Brasil fez grande reforma em 1943, ignorada por Portugal. Em 1945, foi a vez de Portugal remodelar sua escrita, sem que o Brasil acompanhasse.

Placa 15O AO90 propunha-se a acertar o passo desse fado do linguista doido. Mas a medida – ressentida em Portugal como insuportável intromissão estrangeira na língua, um crime de lesa-pátria, um terremoto – mexeu com os brios da nação e levantou protesto maciço. Nem a finalidade explícita da reforma, a unificação da língua escrita, aplacou os ânimos.

Conceda-se que, em Portugal, a reforma desfigura uma batelada de palavras de uso frequente, o que explica a grita, os libelos inflamados e a objeção indignada. Gente de peso, figuras públicas, escritores, políticos, linguistas opuseram-se ostensivamente às novas regras. Blogues de resistência cívica continuam na luta ainda agora.

Peço ao distinto leitor a amabilidade de lançar uma vista a estes dois fragmentos.

Interligne vertical 12«Minha mulher a dias, que labuta asinha mas esbanja lixívia em sanitas e autoclismos, queixou-se do novo lanço com portagem que lhe cabe enfrentar, com a carrinha, na hora de ponta. Posto que o trecho tenha ficado giro, sabe a desperdício. Deixa a molesta sensação de cobres terem sido deitados fora.»

«O abaixo assignado promette aos seus freguezes que todas as encommendas effectuar-se-hão com a maior promptidão e exactidão. Tambem encarrega-se de n’ellas ageitar quaesquer eventuaes concertos.»

O primeiro parágrafo, que segue escrupulosamente as normas do AO90, foi escrito em português europeu. Qualquer cidadão luso o lerá sem perder uma palavra. O segundo trecho, calcado em anúncio publicado num jornal brasileiro faz 150 anos, foi grafado no estilo antediluviano da época – mas em português do Brasil.

by Alexandre Affonso, desenhista

by Alexandre Affonso, desenhista

Essas duas passagens mostram que, para a mútua compreensão, pouco conta a grafia. Ainda que se alcançasse a harmonização, o efeito seria o de emplastro em perna de pau. Por mais que se reforme a escrita, a variante europeia e a brasileira seguirão, impávidas, inexorável rota de afastamento.

Pragmáticos e despidos de exaltações nacionalistas, softwares continuam a oferecer ambas as variantes: português-pt e português-br, à escolha do freguês. O AO90 ilustra a desabusada tirada de Horácio: «Parturient montes, nascetur ridiculus mus» – a montanha pariu um ridículo camundongo.