Caça às palavras versão Beta

José Horta Manzano

A briga é antiga. Cochila sossegada por anos até que, de repente, desperta de sobressalto, assim que algum esperto decide redescobrir o trovão e reinventar a pólvora.

O episódio que vou narrar se desenrolou no início da década de 1960. Naquela época, gramáticas e dicionários assinados pela equipe de Francisco da Silveira Bueno (1898-1989) eram adotados nas escolas oficiais. O Silveira Bueno foi precursor do Houaiss e do Aurélio.

Em meados de 1961, por iniciativa de um advogado carioca influente junto ao governo federal, uma comissão foi nomeada especialmente para avaliar a ‘perniciosidade’ de manter no dicionário Silveira Bueno certos vocábulos julgados ofensivos.

Os tempos eram outros. As preocupações não eram as de hoje. Ninguém podia prever, por exemplo, que um dia existiria a sigla LGBT e as preocupações que a acompanham. A ênfase não era posta em assuntos sexuais, como hoje. Aliás, pouco se falava de sexo, que não era assunto de salão. Ainda que, à boca pequena, se cochichassem comentários sobre certos comportamentos sexuais fora dos padrões, oficialmente dava-se de barato que todos se conformavam com a norma, sem rebeldia nem fantasia. A briga com os dicionários era de outra natureza.

Os verbetes incriminados, aqueles que podiam perturbar a “mente inocente” dos jovens que consultavam a obra, eram: judeu, judiar, negro, favela, panamá, jesuíta.

Na época, a palavra judeu era polissêmica, ou seja, tinha mais de um significado. Além de designar a religião ou a etnia, também designava um usurário, avarento, negocista – acepção pouco usual nos dias de hoje. O verbo judiar, embora bastante utilizado na linguagem de todos os dias, lembrava os maus tratos infligidos aos judeus nos tempos sombrios da Santa Inquisição.

Negro sempre simbolizou coisa infeliz, como hora negra, sorte negra, nuvens negras, sentimentos negros. A proposição da comissão era eliminar(!) do dicionário a palavra negro e substituí-la por preto. Mas os tempos mudam, senhores! Fosse hoje, a discussão talvez viesse com sinais invertidos. É que, meio século atrás, chamar alguém de “negro” podia ser tomado como xingamento pesado. O certo era dizer preto. Veja como as coisas mudam.

Favela, que também tinha a acepção de “lugar de malandros e vagabundos”, deveria ser cortada do dicionário. Panamá como sinônimo de negócio podre era outra a banir. (Essa acepção se referia à Cia. do Canal do Panamá, que faliu estrepitosamente no fim do século XIX, fato hoje caído em completo esquecimento.)

Havia mais. A comissão implicou ainda com o verbete jesuíta. (Francamente, parece que tinham fixação com religião.) De fato, entre os significados do termo, dicionários mencionavam (e ainda mencionam) finório, astuto. Segundo a comissão, a palavra podia até ficar, mas essa menção tinha de desaparecer.

Pra encurtar, não deu em nada. O presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo poucas semanas depois, e, da comissão, ninguém mais ouviu falar. A um repórter, Silveira Bueno, o “dono” do dicionário, afirmou que, de qualquer maneira, os verbetes não seriam retirados em hipótese nenhuma. O futuro confirmou a afirmação. Estão todos lá, alguns em morte cerebral, mas de coração batendo.

São os falantes que fazem a língua, não os dicionários. Acusar o “pai dos burros” é caminho equivocado. Seria como se um internauta, desagradado com os spams que recebe, quebrasse a tela do computador. Não veria mais nada, mas as mensagens indesejáveis continuariam a se acumular em sua conta email.

Encobrir a realidade é perda de tempo e de esforço, que ela sempre acaba aparecendo. Você a expulsa pela porta, ela volta pela janela.

Quando a mulata era a tal

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 fev° 2017

Cada sociedade tem os próprios tabus. Gestos ou palavras que, aqui e agora, passam batidos podem ser repreensíveis ou inaceitáveis em outros lugares. Com o passar do tempo, permissões e proibições evoluem. Tempos houve em que desquitada que ousasse juntar-se com outro homem não entrava em casa de respeito. Não que lhe fechassem as portas, mas se sentia malvista, se autocensurava. Até o qualificativo de «amigada» era depreciativo. O recato daquela época nos parece hoje excessivo, quase hipócrita. Recato… Taí palavra que anda em falta nas prateleiras do país.

Lembro-me de uma polêmica que espocou em 1961. Numa época em que o primeiro Aurélio ainda não havia sido editado, a estudantada se socorria do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, da equipe do filólogo Silveira Bueno. Em maio, alevantou-se uma grita exigindo que o dicionário fosse expurgado de termos considerados ofensivos. O governo levou o assunto a sério e incumbiu o ministro da Educação de ouvir os descontentes. Segundo eles, várias palavras tinham de ser sumariamente banidas. Entre elas: favela, negro, panamá, jesuíta e judas. Depois de debruçar-se sobre o caso, a comissão moderadora chegou à (óbvia) conclusão de que o dicionário não faz a língua, limitando-se a registrar-lhe os vocábulos. O assunto se desmilinguiu e acabou morrendo na praia. Poucos meses depois, a renúncia de Jânio enterraria de vez a questão.

Samba 3Hoje esse relato faz sorrir. Todos sabem que a língua é feita pelos que a utilizam. Proscritas ou não, palavras continuarão a existir e a ser utilizadas. Há montes de termos novos, de uso corrente, que ainda não aparecem em dicionário nenhum. O contrário também é verdadeiro: vocabulários estão repletos de palavras que, fora de circulação há tempos, não são mais compreendidas. Afinal, sem o judas, como ficaria a malhação do Sábado de Aleluia? Cada bobagem…

O carnaval está aí. Semanas atrás, alguns blocos, especialmente do Rio de Janeiro, anunciaram a decisão de banir certas músicas. São marchinhas que, embora tradicionais e conhecidas por todos os foliões, sofrem de um pecado original impossível de ser remido: mencionam a palavra «mulata». Suponho que alguém de poucas letras, daqueles que ouvem cantar o galo sem saber onde está o poleiro, tenha sido informado de que, etimologicamente, mulato deriva de mula.

Em rigor, faz meio milênio que isso é verdade, desde a criação do termo. Agora pergunto: o distinto e culto leitor já se tinha dado conta desse parentesco etimológico? Não? Nem eu. Erradicar do repertório músicas pela simples razão de conterem uma palavra que se decidiu banir é atitude excessiva. Acaba surtindo efeito contrário: ao invés de encoberto, o «pecado» se torna ainda mais visível. Sai da Praça Onze mas ganha a praça pública.

samba-4Num rápido sobrevoo das letras de um século de cancioneiro popular, encontrei uma centena de músicas que falam do mulato ou da mulata. Todas elas ‒ sem exceção ‒ exaltam o personagem. Ataúlfo Alves brindou à «mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça». Ary Barroso e Luís Peixoto babaram diante da mulata que «quando samba, é luxo só». Vicente Paiva gabou «os olhos verdes da mulata». Verdadeiro hino nacional bis, a própria Aquarela do Brasil, que figura entre as músicas mais executadas no mundo apesar de já ter atravessado oito décadas, sintetiza o Brasil num «mulato inzoneiro».

Tudo o que é excessivo é pernicioso. Levar o conceito do politicamente correto a tais extremos acaba com a alegria do carnaval. Estamos a dois passos de criar o Ministério dos Bons Costumes, encarregado de elaborar o índex das palavras proscritas. Francamente…

Talvez você não saiba que enfezado é atributo de quem está constipado. Dizer que «o chefe está enfezado hoje» equivale a insinuar que ele está cheio de fezes. Poucos já se deram conta de que cueca, culatra e recuar são etimologicamente derivados do nome que se dá à extremidade do tubo intestinal. Poucos têm noção de que a vagem (legume) e a bainha (da calça) são descendentes diretas da palavra latina que indica a genitália feminina. No fundo, é melhor não espalhar a informação. Alguém periga exigir banimento desses termos, nunca se sabe. No mundo, há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Se bem que, quanto ao universo, tenho minhas dúvidas.

Politicamente correto estilo anos 60

José Horta Manzano

Você sabia?

Você acha que essa irritante moda do politicamente correto é novidade, uma importação recente? Pois prepare-se para uma decepção.

A GAZETA, São Paulo  -  20 jul 1961

A GAZETA, São Paulo – 20 jul 1961

Um movimento eclodiu neste Brasil brasileiro muitos anos antes de importarmos essa maneira estranha de nos comunicar, em que cada palavra tem de ser sopesada antes de ser pronunciada.

Um rascunho de cartilha politicamente correta foi apresentado décadas antes de trazermos, de importação, essa novidade tão distante do jeito irreverente de se exprimir de nossa gente.

Mais de cinquenta anos atrás, já havia gente enxergando o mal por toda parte. Na época, a solução preconizada era bem mais radical que hoje. Se, atualmente, certas expressões são apenas desaconselhadas, há meio século a ideia era francamente bani-las, removê-las do dicionário. ¡Vaya radicalismo! ― diriam nossos hermanos.

A capital paulista contou, durante mais de setenta anos, com um jornal de qualidade que, infelizmente, já desapareceu. Chamava-se A Gazeta. Circulou de 1906 a 1979. Quem se interessar em conhecer um pouco da história do jornal pode visitar esta página.

O professor Francisco da Silveira Bueno (1898-1989), filólogo e lexicógrafo, era autor do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, adotado no ensino público.

Em 20 de julho de 1961, o professor Silveira Bueno foi entrevistado por um jornalista da Gazeta. O assunto era justamente a ameaça que sofria seu dicionário de ser amputado de algumas palavras julgadas ofensivas.

Era o prenúncio dos tempos estranhos que vivemos. Já então, confundia-se o recado com o portador. Já então, imaginava-se ingenuamente que, eliminado o mensageiro, estaria automaticamente eliminada a mensagem.

É erro antigo que perdura. A língua é maior que dicionaristas. A língua pertence a seus falantes. Lexicógrafos e dicionaristas nada mais fazem que registrar fatos da língua, não são seus criadores, nem responsáveis por eles.

Inseri no post de hoje a entrevista de 1961. Ela se explica por si mesma, dispensa maiores comentários.

A GAZETA, São Paulo  -  20 jul 1961

A GAZETA, São Paulo – 20 jul 1961

Naquele começo dos anos 60, os Estados Unidos ― grande democracia ― ainda viviam tempos de segregação. Ainda se construíam banheiros públicos separados para pretos e para brancos, ainda se reservavam lugares para não brancos no fundo dos ônibus.

Está aí a prova do pioneirismo de nosso País. Para dizer a verdade, eu bem que preferia que tivéssemos sido os primeiros em outros campos mais proveitosos para a população, mas ― que fazer? ― não se muda a História.

Só mais um detalhe picante. Quem tiver a paciência de ler a entrevista de Silveira Bueno verá que a birra da época era contra a palavra negro, considerada, então, pesada e ofensiva. Os descendentes de africanos haviam de ser chamados de pretos, essa era a forma suave, delicada e correta.

O tempora, o mores!