Orthographia ‒ 1

José Horta Manzano

“Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.”

Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), escritor, poeta, crítico e polemista português.

Interligne 18b

Fernando Pessoa aferrou-se, a vida toda, à grafia etimológica (ou pseudoetimológica) pela qual se havia alfabetizado. Recusou dobrar-se à nova regra – dita “simplificada” – instituída pela Reforma Ortográfica portuguesa de 1911.

Fernando Pessoa 1

Para constar, note-se que essa reforma de 1911 foi temperada, cozida e gratinada exclusivamente em Portugal. O Brasil só foi avisado uma vez que o acepipe já estava à mesa, disposto em terrinas fumegantes, pronto a ser servido. Naturalmente, a reforma foi ignorada deste lado do Atlântico. Mas veja só!

Não é de hoje que constantes e inconsistentes imposições de novas regras têm acentuado o sentimento de insegurança linguística que nos fere a todos. Essas frequentes alterações podem até satisfazer o ego (e o bolso) de um punhado de confrades, mas constrangem o cidadão comum. Seja ele brasileiro, luso, angolano ou timorense.

Se as línguas que nos cercam conseguem manter o vigor sem reformas ortográficas, por que razão precisamos nós remendar a nossa tão seguidamente? Que nos preocupemos em consertar o que estiver avariado, pois não? Nosso caminho é outro: nenhuma reforma ortográfica será capaz de salvar nosso falar da degradação.

Orthographia 1

O inglês é língua oficial de jure ou de facto de 79 países ou entidades territoriais. A língua francesa é oficial em 48 países ou entidades. Quanto ao espanhol, 22 países o têm como língua oficial. A despeito dessa disseminação – ou talvez por causa dela – nenhum dos falantes dessas línguas vive engessado num normativismo sufocante como vivemos nós.

Para dar um basta a essa esbórnia, uns bons Fernandos Pessoas andam fazendo muita falta.

Publicado originalmente em 8 mar 2015.

PT ou BR

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 jun 2015

Ortografia 2Dia 13 de maio, comemoramos a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão oficial e entrou para a hagiologia nacional. Em Portugal, o 13 de maio celebra a Virgem de Fátima. Este ano, porém, um clamor quase empanou o fervor. É que, justamente nesse dia, entrou oficialmente em vigor, em terras lusas, a grafia determinada pelo Acordo Ortográfico alinhavado em 1990 pelos integrantes do clube lusófono.

No Brasil, a resistência ao AO90 foi pouca, não passou de protestos frouxos. O adiamento da entrada em vigor, programada agora para o fim deste ano, nem tinha razão de ser. Na prática, Inês é morta: a nova grafia já mandou a antiga às favas.

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

by Fábio Nienow, desenhista gaúcho

Mais do que pelo sol tropical, o brasileiro tem o couro curtido pelas lambadas que levou ao longo dos séculos. Revoluções, golpes de Estado, implantação e supressão súbita de leis, reviravoltas políticas repentinas e constantes, insegurança jurídica causam aflição crônica. Com paciência beneditina e resignação bovina, aprendemos a engolir pronunciamientos e a lidar com eles. Dançar conforme a música não é, entre nós, mera figura de estilo.

Calejados por sucessivas reformas ortográficas, não opusemos grande resistência a essa enésima modificação. O que mais nos incomoda é o pouco tempo que tem decorrido entre remodelações. Pessoas que, em 1990, tinham 55 anos ou mais viram-se obrigadas a aprender a escrever pela quarta vez! Alfabetizadas pela antiga grafia pseudoetimológica, já tinham sido forçadas a se adaptar à reforma de 1943 e à de 1971. A de 1990 amolava, sim, ainda que o desconforto não se tenha convertido em rebelião.

Orthographia 1Já em Portugal, a perspectiva de alterar hábitos de escrita encontrou oposição vigorosa. A resistência não se prendia aos mesmos motivos que provocavam mau humor no Brasil. O problema estava mais para orgulho ferido que para simples aborrecimento.

De um século para cá, houve numerosas tentativas de harmonização da escrita entre Brasil e Portugal. Nenhuma vingou. Em 1907, a Academia Brasileira de Letras propôs novas regras, que não foram seguidas nem mesmo no Brasil. Em 1911, Lisboa alterou profundamente a escrita – mas a novidade só valeu para Portugal. Em 1931, nova tentativa de aproximação gorou. O Brasil fez grande reforma em 1943, ignorada por Portugal. Em 1945, foi a vez de Portugal remodelar sua escrita, sem que o Brasil acompanhasse.

Placa 15O AO90 propunha-se a acertar o passo desse fado do linguista doido. Mas a medida – ressentida em Portugal como insuportável intromissão estrangeira na língua, um crime de lesa-pátria, um terremoto – mexeu com os brios da nação e levantou protesto maciço. Nem a finalidade explícita da reforma, a unificação da língua escrita, aplacou os ânimos.

Conceda-se que, em Portugal, a reforma desfigura uma batelada de palavras de uso frequente, o que explica a grita, os libelos inflamados e a objeção indignada. Gente de peso, figuras públicas, escritores, políticos, linguistas opuseram-se ostensivamente às novas regras. Blogues de resistência cívica continuam na luta ainda agora.

Peço ao distinto leitor a amabilidade de lançar uma vista a estes dois fragmentos.

Interligne vertical 12«Minha mulher a dias, que labuta asinha mas esbanja lixívia em sanitas e autoclismos, queixou-se do novo lanço com portagem que lhe cabe enfrentar, com a carrinha, na hora de ponta. Posto que o trecho tenha ficado giro, sabe a desperdício. Deixa a molesta sensação de cobres terem sido deitados fora.»

«O abaixo assignado promette aos seus freguezes que todas as encommendas effectuar-se-hão com a maior promptidão e exactidão. Tambem encarrega-se de n’ellas ageitar quaesquer eventuaes concertos.»

O primeiro parágrafo, que segue escrupulosamente as normas do AO90, foi escrito em português europeu. Qualquer cidadão luso o lerá sem perder uma palavra. O segundo trecho, calcado em anúncio publicado num jornal brasileiro faz 150 anos, foi grafado no estilo antediluviano da época – mas em português do Brasil.

by Alexandre Affonso, desenhista

by Alexandre Affonso, desenhista

Essas duas passagens mostram que, para a mútua compreensão, pouco conta a grafia. Ainda que se alcançasse a harmonização, o efeito seria o de emplastro em perna de pau. Por mais que se reforme a escrita, a variante europeia e a brasileira seguirão, impávidas, inexorável rota de afastamento.

Pragmáticos e despidos de exaltações nacionalistas, softwares continuam a oferecer ambas as variantes: português-pt e português-br, à escolha do freguês. O AO90 ilustra a desabusada tirada de Horácio: «Parturient montes, nascetur ridiculus mus» – a montanha pariu um ridículo camundongo.

Orthographia ‒ 1

José Horta Manzano

“Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.”

Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), escritor, poeta, crítico e polemista português.

Interligne 18b

Fernando Pessoa aferrou-se, a vida toda, à grafia etimológica (ou pseudoetimológica) pela qual se havia alfabetizado. Recusou dobrar-se à nova regra – dita “simplificada” – instituída pela Reforma Ortográfica portuguesa de 1911.

Fernando Pessoa 1

Para constar, note-se que essa reforma de 1911 foi temperada, cozida e gratinada exclusivamente em Portugal. O Brasil só foi avisado uma vez que o acepipe já estava à mesa, disposto em terrinas fumegantes, pronto a ser servido. Naturalmente, a reforma foi ignorada deste lado do Atlântico. Mas veja só!

Não é de hoje que constantes e inconsistentes imposições de novas regras têm acentuado o sentimento de insegurança linguística que nos fere a todos. Essas frequentes alterações podem até satisfazer o ego (e o bolso) de um punhado de confrades, mas constrangem o cidadão comum. Seja ele brasileiro, luso, angolano ou timorense.

Se as línguas que nos cercam conseguem manter o vigor sem reformas ortográficas, por que razão precisamos nós remendar a nossa tão seguidamente? Que nos preocupemos em consertar o que estiver avariado, pois não? Nosso caminho é outro: nenhuma reforma ortográfica será capaz de salvar nosso falar da degradação.

Orthographia 1

O inglês é língua oficial de jure ou de facto de 79 países ou entidades territoriais. A língua francesa é oficial em 48 países ou entidades. Quanto ao espanhol, 22 países o têm como língua oficial. A despeito dessa disseminação – ou talvez por causa dela – nenhum dos falantes dessas línguas vive engessado num normativismo sufocante como vivemos nós.

Para dar um basta a essa esbórnia, uns bons Fernandos Pessoas andam fazendo muita falta.