O casamento do Moacir

José Horta Manzano

Num samba de 1967, Adoniran Barbosa e Osvaldo Molles contam a divertida história da cerimônia de casamento do Moacir. Descrevem a cena:

«Quando os noivos estava no artar
O padre começou a perguntar
Umas coisas assim em latim:
‘Qualquer um de vodis aqui presente
Tem arguma coisa de falar contra esses bodis?’

‘Seu padre, apara o casamento!
O noivo é casado, pai de sete rebento
Fora o que está pra vir
O pai é esse aí: o Moacir!’

Que vexame! A noiva começou a soluçar
Porque o noivo não passou no exame nupiciar
Já acabou-se a festa porque nóis descobriu
Que o Moacir era casado cinco vez lá no Estado do Rio.»

Naqueles tempos recuados, a situação era plausível. Numa época em que registros eram feitos a bico de pena e não se propagavam além dos livros do cartório, não era difícil trapacear com essas coisas. Registros não eram centralizados, o que permitia a qualquer indivíduo tirar diferentes certidões de nascimento. Casos de bigamia e até poligamia não eram raros.

Osvaldo Molles & Adoniran Barbosa

Para felicidade geral da nação, esse tempo passou. Obter documento falso ou indevido tornou-se praticamente impossível. Acredita nisso, distinto leitor? Não esteja tão convicto.

Por incrível que possa parecer, num país com alto grau de informatização, onde todos têm telefone no bolso e acesso à internet, a interconexão entre cartórios de registro civil ainda não é realidade. Cada um atua dentro de seu casulo. Não operam em rede.

Nascimentos, casamentos, divórcios e óbitos declarados num cartório permanecem lá, sem que a informação circule. A prova mais recente foi dada ontem. Ficou-se sabendo que doutor Temer, atual presidente da República, deixou de receber a pensão vitalícia a que faz jus. A suspensão do benefício vem do fato de o beneficiário não ter dado “prova de vida”.

Vamos passar por cima do fato de que é notório que o presidente continua neste vale de lágrimas ‒ o que já bastaria para cumprir a exigência burocrática. Por seu lado, aceitemos o argumento de que, presidente ou não, doutor Temer é um cidadão como os outros, sujeito às mesmas obrigações.

Vamos agora ao cerne da questão. Todo cidadão maior e vacinado tem um registro de identidade e uma inscrição no CPF. Comparando declarações de renda, o fisco chega à sofisticação de cruzar dados para desvendar fraudes. Excetuado o dinheiro que viaja em cuecas ou em malas, nenhuma transação escapa ao controle da autoridade competente. Diga-me, agora: por que absconsa razão os registros da vida civil ‒ nascimento, casamento, divórcio e óbito ‒ não são centralizados num cadastro nacional?

Para trabalhar, estudar, viajar é necessário ser titular de um documento de identidade, que só terá sido emitido a partir do registro de nascimento. Para enterrar um morto, é imprescindível ter em mãos o certificado de óbito. Gostaria de saber o que é que impede os cartórios de comunicarem esses registros a um órgão central.

A obrigação imposta aos pensionistas de se recadastrar anualmente é coisa do tempo do onça. A solução é simples e evidente. Falecido o cidadão, o cartório emitiria o certificado de óbito e, em seguida, transmitiria a informação ao cadastro central. Antes de pagar o benefício a quem de direito, cada caixa de pensões consultaria esse registro para saber se a pessoa ainda vive. Pode parecer trabalho monstruoso, mas a informatização permite que seja feito automática e rapidamente.

No dia em que essa circulação de informações for posta em prática, nossos velhinhos se verão livres desse anacrônico constrangimento anual, bom fruto de nosso famigerado espírito burocrático. A inexistência de registro de óbito deveria ser, ipso facto, prova de vida. A não ser que o falecido tenha sido enterrado sem autorização. Bom, aí já é outro departamento. É caso de polícia.

No nome da cunhada

José Horta Manzano

Uma vez comprei um apartamento no Brasil. Comprar é modo de dizer. Dei pequena entrada e assumi dívida junto ao BNH, o Banco Nacional da Habitação, instituição extinta já faz mais de trinta anos. Na verdade, tornei-me inquilino do banco. Dois ou três anos depois da aquisição, vendi o apê e passei a morar de aluguel. Sem mágoas.

Minha experiência em transações imobiliárias no Brasil é, portanto, limitada e seguramente defasada. De lá pra cá, todos os cidadãos ganharam CPF e o mundo se interligou. Escrituras que se faziam lentamente à mão são hoje executadas por computador em fração de segundo.

Mas esse avanço na modernidade parece ter sido assimétrico. Enquanto redes sociais espalham qualquer notícia em instantes, certas informações continuam sendo processadas como no século 19, pelo menos no Brasil. Transações imobiliárias, por exemplo.

Na Europa ‒ pelo menos nos países do centro e do norte ‒ não viria à cabeça de ninguém passar uma escritura por valor diferente do montante real da transação. Se pagou cem mil, registra por cem mil. Se pagou um milhão, registra por um milhão. Quem trapacear e for apanhado vai parar na cadeia.

E como é que se faz a transação? O comprador não paga diretamente ao vendedor. É obrigatório passar pelo notário, profissional cuja função é intermediar o negócio e se encarregar de toda a burocracia. O comprador deposita o valor da entrada na conta do notário. Por sua vez, o banco financiador deposita o restante do valor do imóvel na mesma conta.

No dia da assinatura, vendedor e comprador se encontram no escritório do notário que, nesta altura, já terá recebido a totalidade dos fundos. Assinada a papelada, o vendedor recebe um cheque do notário com o valor total do bem vendido. O notário, por sua vez, vai-se encarregar do recolhimento dos impostos e de inscrever a transação junto ao registro de imóveis.

No Brasil, esse detalhe da modernidade ainda não foi adotado. Pelo que se tem visto, os que fazem as leis não querem saber de reforçar o controle sobre compra e venda de imóveis. São os primeiros interessados em deixar tudo como está.

Assim mesmo, ainda que o valor registrado seja inferior ao real, fico me perguntando como fazem os grandes corruptos para lavar, no mercado imobiliário, o dinheiro indevidamente recebido. Volta e meia, ouve-se que fulano tinha posto os bens no nome da cunhada, do motorista, do filho, do primo torto. Como assim?

A Receita Federal, que tem o controle dos dinheiros de cada cidadão, dispõe de meios suficientes para cruzar dados e constatar que o primo torto não tem condições financeiras para ser proprietário de imóvel nenhum. Como é que deixam passar? Como é possível que um indivíduo cujo patrimônio cresce da noite para o dia não seja chamado a dar explicações? Para mim, é um mistério. Se alguém souber, suas luzes serão bem-vindas.