Acento, pra que te quero?

José Horta Manzano

Estadão
“As ações e omissões do governo Bolsonaro em apenas tres anos, particularmente nos dois ultimos, demandarão novos parametros de analise dos historiadores no futuro. Afinal, não ha mal maior ja infligido ao Pais pelo poder publico do que as mortes de milhares de pessoas em decorrencia da covid-19 que poderiam ter sido evitadas caso a desidia, o egoismo, a falta de compaixão e a incompetencia administrativa não fossem as marcas da atuação do governo federal no enfrentamento da crise sanitaria.”

Folha
“Do governo Jair Bolsonaro não se pode esperar nada senão tumulto e desinformação, como mostra a escandalosa nota tecnica produzida pelo Ministerio da Mulher, da Familia e dos Direitos Humanos. Como se o despauterio fosse pouco, o ministerio ainda incentiva que o Disque 100, canal governamental de denuncias de violações dos direitos humanos, seja usado por aqueles que não se vacinam para relatar “discriminações” sofridas —o que alem de deturpar o serviço pode vir a sobrecarrega-lo.”

Globo
“Era de esperar que, apos os obstaculos iniciais, muitos deles criados pelo proprio presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Saude, Marcelo Queiroga, a vacinação infantil no pais avançasse sem maiores sobressaltos. Mas não. Em algumas cidades, pais que levam os filhos aos postos de saude são surpreendidos com exigencias descabidas, como a obrigatoriedade de assinar um termo de consentimento, medida que contraria as normas do Ministerio da Saude e funciona como um desestimulo à vacinação.”

Os trechos acima foram extraídos de editoriais dos três principais jornais do país. O distinto leitor há de ter sentido que algo estava estranho. Pois foi de propósito. Eliminei todos os acentos, tanto os agudos (‘) quanto os circunflexos (^). O til ficou porque não é acento, é sinal gráfico que indica nasalização (e que pode coexistir com acento tônico, como na palavra ‘bênção’). O acento grave também ficou porque não indica sílaba tônica, mas a junção de dois aa, uma crase.

Agora vem a pergunta: alguém sentiu alguma dificuldade na leitura? Engasgou nalguma palavra, não entendeu um trecho, ficou na dúvida sobre algum significado? Acredito que não.

Costumo comparar nossa língua e sua multidão de acentos com outras que não têm nenhum. Como é que pode? Como é que um inglês ou um alemão se viram sem esses sinaizinhos? E os italianos que, afinal, têm uma língua latina, bastante próxima da nossa? Eles só usam o acento grave para indicar palavras oxítonas, mais nada.

Acho que, na próxima reforma ortográfica (que não deve demorar, visto que elas são tão frequentes entre nós), os sábios deveriam refletir sobre isso. Dá pra eliminar, fácil, 19 em cada 20 acentos agudos e circunflexos. Sem prejuízo da leitura ou da compreensão.

Antes da reforma de 1943, a norma brasileira da língua impunha pouquíssimos acentos. Se os antigos conseguiam se virar, por que é que nós, os modernos, somos obrigados a nos perder nessa selva de acentos – na maioria, desnecessários?

Mal-entendido episcopal

José Horta Manzano

Hoje aponto mais uma curiosidade na série erros de compreensão. Já falamos do avental inglês, do surrender, do Corinthians, da cidade do Porto. Vamos entrar na igreja.

MitraEntre os antigos gregos, inspetores e superintendentes eram chamados de ἐπίσκοπος (epískopos). O nome não fazia distinção entre sacros e profanos. Todo controlador tinha direito à apelação. O termo é composto de epi (sobre) + skopeo (vigiar, tomar conta). Os romanos sugaram a palavra e a incorporaram a seu léxico sob a forma latinizada epĭscŏpus.

Com o advento do cristianismo, a palavra especializou-se. Passou a designar o chefe de uma comunidade de fiéis, aquele que ocupava posição mais elevada em relação aos demais. Na Igreja Católica, o termo qualifica hoje o prelado que, sucessor dos apóstolos primitivos, oficia sob a autoridade do papa e tem o encargo de zelar pelas paróquias de sua jurisdição.

Em domínios franceses, a erosão natural transformou o primitivo epĭscŏpus no moderno évêque. Em terras hispânicas, o termo evoluiu dentro das leis linguísticas: deu obispo.

Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682) Artista espanhol

Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682)
Artista espanhol

A última flor do Lácio dá, neste caso, prova de que realmente estava no fim da fila. Há de ter recebido a nova palavra por via castelhana. Em princípio, o obispo espanhol deveria ter permanecido tal e qual em português. Mas não foi assim. Por que será?

Mitra 3Aconteceu uma colisão. Na Europa medieval, com exceção dos eclesiásticos e de um ou outro nobre, o povão era iletrado. Aos lusos, a palavra castelhana obispo soou como se «o bispo» fosse. E assim ficou. O “o” inicial, entendido como artigo, foi eliminado.

A forma original sobrevive em cultismos introduzidos em português tardiamente: episcopal, episcopado. Entre os cristãos dos primeiros tempos, dizia-se episcopisa de mulheres que exerciam certas funções sacerdotais. Modernas seitas neopentecostais, por razões que lhes são próprias, preferem a curiosa variante «bispa».

E quem não gostar que vá reclamar com o bispo.

A tragédia da língua portuguesa

Dad Squarisi (*)

Tornou-se lugar-comum falar na baixa qualidade do ensino. Em testes nacionais, comprova-se, ano após ano, o mau desempenho dos alunos, sem domínio das habilidades de ler, escrever e fazer as quatro operações. Em exames internacionais como o Pisa, os estudantes brasileiros figuram na rabeira dos concorrentes.

ExameO Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2013 chama a atenção para o resultado da língua portuguesa. Mais de 5 milhões de jovens se submeteram à avaliação para concluir o ensino médio, entrar em universidade pública, participar de programas de intercâmbio, obter bolsa de financiamento em instituições privadas. No total, 14.715 escolas compõem o ranking.

Pouco mais de um terço (33,87%) obteve nota abaixo de 500 na redação. Foram reprovadas. Levando-se em consideração o desempenho individual, mais da metade dos alunos de 3.900 colégios tiraram nota vermelha. O fracasso na produção de texto implica soma de incompetências. Entre elas, falta de domínio da norma culta; incapacidade de leitura e compreensão de enunciados, de organizar e interpretar informações, de argumentar, de transitar de uma ideia para outra.

AnalfabetoAvaliar a redação vai além de analisar a habilidade de escrever. A língua funciona como pré-requisito para as demais disciplinas. Antes de resolver um problema de matemática, por exemplo, o estudante precisa entender o enunciado. Ele pode até saber o raciocínio para chegar à resposta, mas é incapaz de perceber o que a questão pede. Limitação similar se observa em geografia, história, biologia. O jovem estuda, mas não aprende.

Ele é vítima de uma a escola que não ensina. Currículos desatualizados, material didático de má qualidade, bibliotecas mortas, laboratórios decorativos aliam-se a professores desmotivados e sem a qualificação necessária. Espaços assim funcionam como castigo para rapazes e moças que vivem em universo tecnológico povoado de atividades desafiadoras.

Professora 1Sentar-se calado, um atrás do outro para ouvir o professor que repete o que está nos livros ou copiar matéria do quadro é cena do século 19, quando estabelecimentos preparavam os empregados exigidos pela revolução industrial. Não condiz com a sociedade do conhecimento, que exige profissionais proativos, empreendedores, aptos a responder a desafios com criatividade.

Como chegar lá? O ponto de partida é o professor. A carreira do magistério deve atrair os melhores talentos. Para tanto, além de formação acadêmica, impõe-se carreira top. Os brasileiros ambiciosos devem saber que vale a pena ser docente. Não só pelo salário, mas também pela progressão profissional e pelo respeito da sociedade.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.