Castelos de cartas

Percival Puggina (*)

«Qualquer idiota com mãos firmes e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois soprar para derrubá-lo.»

O que aconteceu na Boate Kiss teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal.

Muitos brasileiros que emigram para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns, é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a decisão de retornar às origens.

Na essência da adaptação ao cotidiano dos países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes locais, cria uma atmosfera irrespirável.

No entanto, o Primeiro Mundo é o que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo agindo no submundo.

Em virtude dessa regra certos imigrantes preferem retornar à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não para, de fato, sinalizarem as condutas.

No Brasil, o costumeiro desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em toda parte.

Interligne vertical 14Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir, construídos por governos prestidigitadores.

Há castelos de carta empresariais, concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e de problemas a vida de muitos.

Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes ante a realidade para a qual foram concebidas.

E há castelos de carta como a Boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Irving D. Yalom, no livro “O dia em que Nietzsche chorou”, afirma que, se subirmos suficientemente alto, chegaremos a um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava errado.

Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o incêndio da Boate Kiss deixe de nos queimar a todos.

Ele é uma consequência doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça.

(*) Arquiteto, empresário e escritor. Edita o site puggina.org

E o porteiro não foi preso!

José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 abril 2013

Cada estado traz seu aporte à União. É a regra. Cada um entra com um óbulo condizente com sua população e suas posses. Há estados, no entanto, cuja contribuição tem sido relativamente mais importante que a de outros. Um deles é o Rio Grande do Sul.

Alguns fatos que marcaram a História do Brasil têm origem no estado sulino ou guardam alguma relação com ele. De lá nos veio Getúlio Vargas, fundador da única ditadura de um homem só que o País já conheceu. João Goulart, último presidente a ser apeado por golpe de estado, era gaúcho também. Durante a era militar, aquele que certamente foi o presidente mais esclarecido e mais equilibrado chamou-se Ernesto Geisel. Era gaúcho. O estado pampiano nos deu também Elis Regina, a cantora maior.

Ultimamente, a contribuição do Rio Grande tem incitado o Brasil a dar passos importantes no processo civilizatório. Com decisões ousadas, seus juízes foram os primeiros a equiparar uniões homossexuais a enlaces tradicionais. Suas resoluções podem ter causado algum frisson, mas provocaram as primeiras fissuras no gesso que emprisionava o melindroso assunto.

Faz dois meses, o Brasil e o mundo foram sacudidos por uma notícia pavorosa. O incêndio de uma boate de Santa Maria havia ceifado a vida de 250 jovens e arruinado a razão de existir de milhares de pais, irmãos, namoradas. Foi a tragédia mais mortífera dos últimos decênios. A mídia do mundo inteiro repercutiu a trágica informação.

Brasil

Escaldados com o desenrolar habitual da Justiça brasileira ― que à vezes lembra um jogo de dados viciados ― nenhum de nós esperava que as diligências jurídico-policiais dessem grande resultado. Em casos assim, sabe-se que a tática dos poderosos é: protelar, procrastinar, engavetar, entravar e torcer para que o povo esqueça. Na pior das hipóteses, prende-se o porteiro ou a mulher do café.

Surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Era trágico demais, e os brios gaúchos não estavam dispostos a permitir que jeitinho e malemolência contaminassem o processo. Foram em frente.

O comandante regional do Corpo de Bombeiros foi afastado pelo governador em pessoa. Num primeiro momento, 28 pessoas foram responsabilizadas no inquérito. Entre elas, 19 agentes públicos, bombeiros, secretários. Até o prefeito municipal foi arrolado.

Como se costuma dizer, nada do que for feito trará de volta os que partiram no alvorecer de sua jornada terrena. Mas da desgraça surge a luz. O desastre de Santa Maria terá servido para confirmar, se ainda fosse preciso, que nosso País está mudando aceleradamente. E não só na área econômica, que, a computar-se o espaço desproporcional que ocupa na mídia, parece ser a única preocupação nacional.

Não são as leis nem os decretos que forjam a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que, por meio de seus representantes, faz que novas leis sejam votadas e que novos decretos sejam assinados. Leis, regras e regulamentos apenas formalizam o que já tiver sido sopesado e decidido pelo tecido social.

Dentro de 10 ou 20 anos, o Brasil será um país muito diferente do que conhecemos hoje. A troca de ideias e a interação intensa que internet propicia é indomável. Hoje em dia, tudo se sabe, boas e más notícias se alastram feito fogo de palha. Está cada dia mais difícil ocultar certos crimes e «malfeitos» que antes passavam ignorados.

O ultracomentado processo do mensalão ― e principalmente seu desfecho ― teria sido visto como obra de ficção apenas dez anos atrás. Seus atores jamais imaginaram, nem em pesadelo, que um dia pudessem ser julgados e condenados a anos de prisão. Caíram na armadilha que o progresso tecnológico lhes preparou.

O antigo juiz trabalhista conhecido como Lalau foi condenado, já faz alguns anos, a meio século de prisão em regime fechado. No entanto, a benevolência que costumamos conceder aos poderosos não lhe causou mais que um pequeno desconforto: teve de trocar férias permanentes em suntuoso apartamento de Miami por dias tranquilos em sua mansão paulista. A desculpa, acolhida pela Justiça, tinha sido a idade avançada do condenado, como se a culpa desbotasse com os anos. Como prova de que o olhar da sociedade está em processo acelerado de mudança, Lalau foi levado estes dias a uma penitenciária.

Está cada vez mais próximo o dia em que os pequeninos poderão exercer sua função sem recear inculpação automática em caso de problema no andar de cima.

Em Santa Maria, pelo que noticiaram os jornais, o porteiro da boate não foi preso. Nem a mulher do café.