Grandes & pequenos

José Horta Manzano

Leio hoje que Dilma Rousseff, presidente suspensa(*), está enfurecida. Como de costume, diriam más línguas. O motivo da cólera atual é a decisão, tomada pelas devidas instâncias, de delimitar-lhe o direito de utilizar a estrutura presidencial para viagens.

A lógica é cristalina. O aparato necessário para deslocamento presidencial é pesado e custa os olhos da cara ‒ há que movimentar avião presidencial ou da Força Aérea, seguranças, equipe médica, batedores, pessoal militar, pilotos, pessoal de bordo, mecânicos, motoristas, automóveis, helicópteros, carregadores de guarda-chuva, secretários, abridores de porta, um verdadeiro exército.

Dilma 8Tais atributos de viagem de trabalho, embora custem caro aos contribuintes, são devidos ao chefe do Executivo. Acontece que, neste momento, dona Dilma está suspensa, portanto, de acordo com a Constituição, afastada de toda função oficial. Como prêmio de consolação, continua autorizada a movimentar toda a parafernália em viagens de Brasília a Porto Alegre, onde reside. Inconformada, senhora Rousseff esbraveja.

Lembrei de Charles de Gaulle, o maior dirigente que a França conheceu desde os tempos de Napoleão. Quando foi presidente, o general tinha direito às regalias inerentes ao cargo. Tinha também o direito de morar na ala residencial dedicada ao chefe de Estado e instalada no Palácio do Eliseu.

Pois imagine o distinto leitor que, assim que se mudou para o palácio, de Gaulle mandou instalar um relógio de luz para medir seu consumo particular de eletricidade. E, do primeiro ao último dia, pagou as contas de energia com seu próprio dinheiro.

Charles de Gaulle

Charles de Gaulle

Tem mais. Nas (raras) ocasiões em que convidou a familia para um almoço de celebração particular, reembolsou o Estado francês das despesas. Não parou por aí. Ao deixar a chefia do Estado, manteve intactos seus princípios: renunciou tanto à pensão de ex-militar quanto à aposentadoria de presidente da República. Recusando-se a representar um peso financeiro para os contribuintes, contentou-se com os direitos de autor pelos livros que havia escrito.

Em 1969, ao dar-se conta da baixa de sua popularidade, fez questão de pôr as coisas em pratos limpos. Encontrou um motivo qualquer ‒ uma modificação nas regras de autonomia das regiões do país, simples pretexto ‒, e convocou plebiscito nacional. Foi logo avisando que, caso a proposta fosse rejeitada, renunciaria ao cargo. Não lhe interessava estar à frente de um povo que não mais o apoiava.

Eliseu ‒ Palácio presidencial francês

Eliseu ‒ Palácio presidencial francês

Dito e feito. A maioria do eleitorado votou “não”, e o general perdeu a aposta. Na noite daquele mesmo domingo, apareceu em cadeia nacional de rádio e tevê para anunciar que renunciava à presidência. Sem falta, ao meio-dia da segunda-feira, catou as tralhas e se foi. Já idoso, viveu ainda um ano e meio. É assim. Quem é grande, é grande até o fim. Quem nasceu pra tostão, como dizia minha avó, não chega a merréis.

Interligne 18h(*) Artigo 86
O texto constitucional fala em «presidente suspenso de suas funções». Mais claro, impossível. Durante o período de suspensão, o presidente está afastado de toda função oficial. É livre de viajar para onde bem entender, mas terá de fazê-lo como simples cidadão.

Cento e oitenta dias

José Horta Manzano

Na prática, a teoria é outra ‒ como se costuma dizer. Quando alinhavaram o texto atual da Lei Maior, os constituintes de 1987-88 jamais tinham assistido à destituição, nos conformes, de um chefe do Executivo. Até aquele momento, os engasgos nessa matéria tinham sido de outra natureza.

Washington Luís e Jango Goulart tinham sido apeados do poder, à força, por gente vestida de verde-oliva. Jânio ‒ ninguém entendeu até hoje exatamente por que razão ‒ tinha renunciado ao mandato ainda no primeiro ano de governo. Getúlio, mais teatral, tinha encontrado no suicídio a porta de saída. Tancredo tinha falecido antes mesmo de assumir.

Constituição 4Destituição segundo normas legais nunca tinha havido. Isso certamente explica por que a Constituição menciona a destituição do presidente da República en passant, como se legislasse sobre invasão de marcianos ou outro fato altamente improvável. Era teoria pura, o que levou o legislador a ater-se a considerações vagas e genéricas.

O Artigo 86 da Constituição, que trata do assunto, é bastante sucinto. Com visível displiscência, determina que, acusado criminalmente, o presidente será “suspenso de suas funções”. E continua: “se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do presidente”. Pronto, pára por aí. No papel, tem boa aparência. Na prática, é fonte de bagunça.

Na crença de estar legislando em teoria pura, os constituintes não se deram conta de estar plantando os germes de uma confusão dos diabos. Nada foi previsto sobre a situação do presidente suspenso. Conserva, por direito, prerrogativas e mordomias? Ou volta pra casa de ônibus?

Senado federal 1Nenhum prazo limite foi imposto ao Congresso para julgar. Em teoria, os atuais debates poderiam se prolongar, sem ferir a Lei Maior, por dois anos e meio, até o fim do mandato de Dilma Rousseff. Madame reintegraria seu cargo e ficaria até 2018.

Bom o que está feito está feito. É melhor esperar por nova Constituição para regulamentar a matéria como se deve. Fosse feita uma alteração agora, cheiraria a casuísmo. Mais vale esperar que a enxurrada passe. Serenados os ânimos, virá a alteração para deixar o assunto claro e preciso.

Enquanto isso, dona Dilma continua dando o ar de sua graça. Ainda ontem criticou o governo interino alegando que o ministério atual, por ser composto exclusivamente por homens de certa idade e de raça (aparentemente) branca, não é representativo da diversidade do povo brasileiro.

É decepcionante que, após tantos anos no andar de cima, a «gerentona» não tenha ainda aprendido a diferença entre os variados personagens com os quais conviveu. Representantes, dona Dilma, são os deputados, eleitos nominalmente pelo voto popular direto. Esses, sim, representam a diversidade da população.

Na Câmara, há homens, mulheres, jovens, velhos, pretos, brancos, religiosos, agnósticos, bonitos, feios, alguns cultivados, muitos ignorantes, gente fina e bandidos ‒ um retrato acabado da sociedade.

Dilma 15Ministério é outra coisa, dona Dilma. Ministro não é representante do povo, mas auxiliar direto do presidente, homem de confiança por ele livremente nomeado. Presidente bem-intencionado escolhe auxiliares competentes, honestos, de ficha limpa, pouco importando cor de pele, sexo ou idade.

A observação da presidente suspensa dá boa pista sobre a proverbial ineficiência de seus ministros. Há de tê-los escolhido como um iletrado organizaria livros na estante: por ordem de cor ou de tamanho. Ou de espessura, que também funciona. Não adianta. Pau que nasce torto…

E pensar que ainda teremos de suportar isso por meses.