O crustáceo censurado

José Horta Manzano

A mídia israelense não deixou barato – crucificou o conterrâneo deles que atualmente ocupa a função de embaixador em Brasília. Talvez o distinto leitor já tenha tomado conhecimento através de redes sociais. Se não for o caso, conto a história.

Desde que o ainda candidato Bolsonaro, sem atinar com as consequências do que dizia, declarou que, se eleito, transferiria a embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém, o alto escalão israelense ficou alvoroçado. Se Bolsonaro fosse eleito e cumprisse a promessa, a mudança de endereço da embaixada do Brasil seria um importantíssimo gesto de apoio à política do país.

Doutor Bolsonaro acabou eleito. No dia da tomada de posse do cargo – um incômodo primeiro de janeiro que atrapalha todo o mundo – Israel foi o único país não latino-americano a prestigiar o evento com a presença do chefe de governo. Enquanto os demais países enviavam ministros, encarregados de negócios, chefes de gabinete, Israel mandou um sorridente Benjamin Netanyahu, tratado aqui como convidado VIP.

O tempo passou, a ideia de mudança de endereço da embaixada foi colocada no fundo da geladeira, e ninguém por aqui fala mais nessa tolice. Acontece que o governo israelense não esqueceu. Assunto importante para eles, continua na pauta. Nesse cenário, o embaixador de Israel em Brasília almoçou domingo passado com doutor Bolsonaro, antes de irem juntos assistir ao jogo da Seleção.

Na refeição, nada de pão com leite condensado como nos tempos de demagogia forçada. O chef preparou lagosta – coisa fina e cara. (Mas quem paga é a viúva.) Como é moda nestes tempos de selfies pra cá e pra lá, uma foto imortalizou a cena da refeição. A forma dos copos revela que ambos se hidratam com sorsos alternados de vinho tinto e de uma bebida escura que lembra suco de uva ou coca-cola. (Deve substituir o leite condensado ausente.)

Ao aceitar compartilhar um prato de lagosta regado a vinho, o embaixador mostra não seguir a linha ortodoxa da religião hebraica. Não é tão grave assim, mas, como integrante da casta dos dirigentes do país, não lhe cai bem mostrar desabrido desrespeito à dieta kosher, sob pena de chocar parte importante do eleitorado. Ora, lagosta, assim como tudo o que vem do mar e não tem escamas nem nadadeiras, é alimento proibido pelas regras religiosas. Antes de tuitar a foto, a embaixada de Israel em Brasília não teve dúvidas: borrou grosseiramente os pratos pra esconder a transgressão alimentar.

Acontece que, talvez por ser domingo, o especialista em photoshop devia estar de folga. Os borrões pretos pintados em cima dos crustáceos são tão malfeitos que deixam aparecer parte da cor típica do alimento refinado que pretendiam esconder. Clique na foto pra ampliar e comprovar. Pegou mal pra caramba. As redes sociais não perdoaram. O almoço com lagostas ao molho de photoshop foi ridicularizado. Até (ou principalmente) a imprensa israelense deu cobertura à gafe. Aqui está o artigo do The Times of Israel.

Ah, essas redes sociais! Quando a gente está crente de abafar, dá o maior furo… Como diz o outro, ‘em boca fechada, não entra mosca’. Atualizando, fica assim: ‘Em almoço sem foto, ninguém fica sabendo qual foi o prato’. De qualquer modo, amanhã todos terão esquecido. E a conta, naturalmente, vem pra nós.

Je suis François

José Horta Manzano

Papa Francisco

Papa Francisco

Não é raro que governantes e altas personalidades façam declarações inabituais por ocasião de viagem ao estrangeiro. Será por influência do ar viciado da cabine do avião. Será por causa da sensação de liberdade concedida pelo passeio. Freud deve poder explicar. O fato é que figurões costumam soltar a língua.

Assim fez o Lula em Paris, logo no começo do primeiro mandato, quando ainda saboreava a chegada ao poder como conto de fadas – sem imaginar que se transformaria no pesadelo de hoje. Naquela ocasião, confessou algo do tipo: «Sou, mas… quem não é?». Era sobre o caixa dois de seu partido, escancarado pelo escândalo do mensalão. A declaração imprudente do Lula há de persegui-lo pelo resto da existência.

Lionel Jospin, que foi primeiro-ministro da França de 1997 a 2002, tinha ambições presidenciais. O ar viciado do avião há de tê-lo afetado quando voltava de uma viagem ao exterior. Confidenciou a um bando de jornalistas que o presidente Chirac estava velho, com um pé na cova e incapaz de continuar no cargo. A eleição ocorreu meses depois. Chirac ganhou. Derrotado e desmoralizado, Jospin pendurou definitivamente as chuteiras. A entrevista dada no avião foi-lhe fatal.

Em viagem do Sri Lanka às Filipinas, Papa Francisco usou e abusou de sua habitual franqueza. Nada mais fez do que reafirmar posição oficial da Igreja – mas, saída de sua boca, a fala encontra eco planetário. Cobrado sobre o assassinato de caricaturistas franceses, não se escafedeu. Em seu característico estilo direto, defendeu o direito à liberdade de expressão. Mas acrescentou que ele não abrange o direito à ofensa.

Charlie 4Sorridente e expressivo, Francisco fez uma comparação. Usando palavras pouco comuns para o cargo que ocupa, foi claro: «Se alguém vier falar mal de minha mãe, periga levar um soco!». E acrescentou que era reação normal, humana. Finalizou assinalando que não se deve zombar de outras religiões nem menosprezar a fé de outrem. Quem o fizer estará se expondo a represálias.

Reafirmou que não abona, de modo nenhum, os atentados: «É verdade que não se pode reagir com violência.». Mas – emendou – não é aceitável que um punhado de caricaturas «ridicularize uma inteira religião».

Para Francisco na chegada a Manila

Para Francisco na chegada a Manila

Concordo com a posição do surpreendente hermano papa. Por mais chocante que tenha sido o ataque à redação do semanário Charlie Hebdo, deve-se levar em conta que os fanáticos reagiram ao que ressentiam como grave ofensa à sua fé.

A meu ver, a carnificina do Hyper Cacher – supermercado kosher parisiense – foi, essa sim, ignóbil, abjecta, asquerosa. Quatro vítimas foram chacinadas não por algum ato que tivessem praticado, mas unicamente pelo fato de serem judias.

O inquietante espetáculo destampou a fossa onde cochilam pogroms e noites de cristal. O odor fétido, relíquia de uma era de trevas, estagna perigosamente nos ares de Paris.

Interligne 18h

Para assistir ao vídeo do pronunciamento papal (um minuto e meio), clique aqui.