Je suis François

José Horta Manzano

Papa Francisco

Papa Francisco

Não é raro que governantes e altas personalidades façam declarações inabituais por ocasião de viagem ao estrangeiro. Será por influência do ar viciado da cabine do avião. Será por causa da sensação de liberdade concedida pelo passeio. Freud deve poder explicar. O fato é que figurões costumam soltar a língua.

Assim fez o Lula em Paris, logo no começo do primeiro mandato, quando ainda saboreava a chegada ao poder como conto de fadas – sem imaginar que se transformaria no pesadelo de hoje. Naquela ocasião, confessou algo do tipo: «Sou, mas… quem não é?». Era sobre o caixa dois de seu partido, escancarado pelo escândalo do mensalão. A declaração imprudente do Lula há de persegui-lo pelo resto da existência.

Lionel Jospin, que foi primeiro-ministro da França de 1997 a 2002, tinha ambições presidenciais. O ar viciado do avião há de tê-lo afetado quando voltava de uma viagem ao exterior. Confidenciou a um bando de jornalistas que o presidente Chirac estava velho, com um pé na cova e incapaz de continuar no cargo. A eleição ocorreu meses depois. Chirac ganhou. Derrotado e desmoralizado, Jospin pendurou definitivamente as chuteiras. A entrevista dada no avião foi-lhe fatal.

Em viagem do Sri Lanka às Filipinas, Papa Francisco usou e abusou de sua habitual franqueza. Nada mais fez do que reafirmar posição oficial da Igreja – mas, saída de sua boca, a fala encontra eco planetário. Cobrado sobre o assassinato de caricaturistas franceses, não se escafedeu. Em seu característico estilo direto, defendeu o direito à liberdade de expressão. Mas acrescentou que ele não abrange o direito à ofensa.

Charlie 4Sorridente e expressivo, Francisco fez uma comparação. Usando palavras pouco comuns para o cargo que ocupa, foi claro: «Se alguém vier falar mal de minha mãe, periga levar um soco!». E acrescentou que era reação normal, humana. Finalizou assinalando que não se deve zombar de outras religiões nem menosprezar a fé de outrem. Quem o fizer estará se expondo a represálias.

Reafirmou que não abona, de modo nenhum, os atentados: «É verdade que não se pode reagir com violência.». Mas – emendou – não é aceitável que um punhado de caricaturas «ridicularize uma inteira religião».

Para Francisco na chegada a Manila

Para Francisco na chegada a Manila

Concordo com a posição do surpreendente hermano papa. Por mais chocante que tenha sido o ataque à redação do semanário Charlie Hebdo, deve-se levar em conta que os fanáticos reagiram ao que ressentiam como grave ofensa à sua fé.

A meu ver, a carnificina do Hyper Cacher – supermercado kosher parisiense – foi, essa sim, ignóbil, abjecta, asquerosa. Quatro vítimas foram chacinadas não por algum ato que tivessem praticado, mas unicamente pelo fato de serem judias.

O inquietante espetáculo destampou a fossa onde cochilam pogroms e noites de cristal. O odor fétido, relíquia de uma era de trevas, estagna perigosamente nos ares de Paris.

Interligne 18h

Para assistir ao vídeo do pronunciamento papal (um minuto e meio), clique aqui.