Colonização cultural

José Horta Manzano

Um dos recalques mais profundos de que sofrem certos integrantes de nosso «governo popular» é definido pela magistral locução complexo de vira-lata. Muitos figurões – entre os quais nosso guia – não conseguem se libertar desse sentimento de inferioridade que lhes corrói as tripas.

Cachorro 23O Lula, apesar de ser hoje um homem rico e de ter ocupado o posto mais importante da República, continua vendo um fosso entre ele e a «zelite». Convenhamos que, em grande parte, o culpado é ele mesmo.

Discurso 2Desde que subiu pela primeira vez numa caixa de sabão pra discursar na porta da fábrica onde trabalhava, passaram-se quase quarenta anos. Tempo para estudar, houve. Se nosso guia preferiu dedicar-se exclusivamente a assuntos que lhe pareceram mais lucrativos, foi por opção livre e consentida. Se ainda hoje é inculto, fala palavrão em público e gospe pro santo, que não se espante se a maioria o rejeita.

Arribado à presidência, seus áulicos o aconselharam a empreender ações firmes para liberar o povo dos grilhões da colonização estrangeira. Passaram a estigmatizar tudo o que lembrasse louros de olhos azuis. Abriram os braços a Ahmadinedjad, do Iran; a Chávez, da Venezuela; aos bondosos irmãos Castro, de Cuba; a Evo, da Bolívia. Para reforçar, sorriram a ditadores africanos.

Na cabeça dessa gente, o remédio para nos livrarmos do complexo de inferioridade é renegar a cultura ocidental, justamente aquela da qual fazemos parte.

Discurso 3Raciocínio míope. Antes de descartar uma camisa, convém ter outra à mão, caso contrário, periga-se sair à rua descamisado. Dado que ninguém pensou em providenciar camisa nova, continuamos usando a que ia ser jogada fora. Com furos, rasgos e remendos aumentados e visíveis.

Na França, uma das funções da Académie – instituição equivalente a nossa ABL – é sugerir termos e expressões para substituir empréstimos estrangeiros. Por conselho dos acadêmicos, não se diz marketing, mas mercatique. Não se fala em software, mas em logiciel. Ninguém jamais disse fax, mas télécopie. Email é conhecido como message électronique. E assim por diante. Certos neologismos pegam, outros não. C’est la vie.

Chamada Estadão, 29 jul° 2015

Chamada Estadão, 29 jul° 2015

A chamada que colhi hoje no Estadão mostra que a aproximação com Ahmadinedjad, Chávez, Castro & cia não surtiu efeito tangível no campo cultural. Continuamos colonizados. Food park, contêiner, food truck, bike food… um condensado de falta de imaginação!

A desenvoltura que muitos demonstram na hora de roubar é proporcional à timidez de que todos dão prova na hora de ousar expressões novas. É pena.

Paralimpismo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° setembro 2012

Enganam-se o gentil leitor e a distinta leitora se imaginarem que estou aqui, a mando de sabe-se lá que multinacional, cumprindo a nobre missão de apresentar-lhes novo produto de limpeza. O que parece nem sempre é, como sabem todos os que, um dia, já passaram pela experiência de levar gato por lebre. Comecemos pelo começo, que dá mais certo.

Sentindo os ventos fétidos que prenunciavam as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, um certo Dr. Ludwig Guttman, cirurgião do Hospital Judeu de Breslau (hoje Wroclaw), deixou a Alemanha em 1939 e se refugiou na Inglaterra, onde continuou a exercer seu ofício.

Os Jogos Olímpicos previstos para 1940 e para 1944 não se realizaram, por razão de conflito mundial. Mas Londres fez questão de sediar os de 1948. Quis mostrar ao mundo que, apesar das perdas, dos bombardeios, das privações, o velho leão ainda estava de pé, alerta, pronto para mostrar-se sob seu perfil mais favorável.

Os combates haviam deixado um rastro de mutilados e estropiados. Dr. Guttman teve a brilhante ideia de valer-se dos holofotes dos Jogos Olímpicos para promover uma manifestação paralela, exclusivamente dedicada a atletas cadeirantes. Diga-se logo que a ideia não despertou no público nenhum entusiasmo delirante. A vista daqueles amputados reavivava feridas dolorosas e ainda não cicatrizadas. Aquilo trazia lembrança do que todos queriam justamente esquecer. Apesar de o bom doutor ter tentado oficializar sua iniciativa, o sucesso foi tênue. Ainda não era a hora.

A ideia cochilou. Foi preciso que uma geração inteira se passasse para que a humanidade estivesse pronta a aceitar a novidade. Veio aos poucos. Já em 1960, nos Jogos de Roma, houve um embrião de competições para atletas diminuídos por defeitos físicos. Pouco a pouco, a nova prática foi ganhando os espíritos, e diretórios nacionais foram-se formando. Logo veio a necessidade de criar um comitê internacional para coordenar os diretórios nacionais da nova modalidade esportiva. Em 1989, fundou-se em Düsseldorf o organismo tutelar. Faltava dar-lhe o nome.

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

Não houve grandes discussões. Tomou-se o prefixo grego παρα (para), que evoca a semelhança, a proximidade, e juntou-se-lhe o nome tradicional das competições. Nasceram assim os Jogos Paraolímpicos. As duas raízes gregas compuseram um adjetivo novo, claro, explícito. Ingleses, alemães, franceses, castelhanos decidiram amputar a primeira letra do nome principal. Para nós, soa estranho. Resultaram formas como Paralympic Games, Paralympische Spiele, Jeux Paralympiques, Juegos Paralímpicos. Parece produto de limpeza.

Pelo menos desta vez — é tão raro, daí nosso orgulho — foi-nos permitido desdenhar com certa superioridade da falta de cultura dos falantes dessas línguas. Nós, com nossos Jogos Paraolímpicos, havíamos tido a sabedoria de manter o aspecto, o som e a ideia, tudo sem deturpar nenhuma palavra! Foi envaidecedor, digo sinceramente. No tempo em que ainda era permitido se exprimir assim, cheguei a pensar: «eles, que são brancos, que se entendam».

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ao contrário do que cantava Eduardo das Neves na marchinha que compôs em 1902 em homenagem a Santos Dumont — «a Europa curvou-se ante o Brasil» —, desta vez fomos nós que sucumbimos. O Brasil acabou dobrando-se diante da Europa.

Não sei quem teve a fabulosa ideia, nem quando esse espantoso estalo terá ocorrido. O fato é que a palavra tradicional foi atirada à lata de lixo da história. Atropelamos o espírito de nossa língua. Foram ignorados os usos e costumes de nossa norma culta que, tradicionalmente, impelem o prefixo a adaptar-se ao nome. Mil anos de formação de nosso falar foram alegremente desconsiderados. Se era para encurtar, que se oficializasse ‘parolímpicos’. Seria uma forma intermerdiária, nem lá nem cá, que talvez satisfizesse a gregos e a troianos.

Mas, não. O braço brasileiro da organização traz o exótico (e mui oficial) nome de… Comitê Paralímpico (sic) Brasileiro. Com site e tutti quanti. O nome de origem foi transfigurado através de uma verdadeira política de faroeste, daquelas que primeiro executam o suspeito, para impossibilitar o devido julgamento. Não se julgam cadáveres.

A adulteração foi heresia perpetrada ao arrepio da forma sacramentada pelo Vocabulário Ortográfico da ABL, guardião da língua! Que aqueles que patrocinaram esse ‘malfeito’ levantem os braços ao céu e agradeçam por não se queimarem mais hereges em fogueiras.

Se alguém pensou em colonização cultural, não há de estar longe da verdade.