Impeachment e quotas

José Horta Manzano

Artigo para o Correio Braziliense

No momento em que escrevo, o julgamento da destituição da presidente ainda não terminou. Seria desajuizado, portanto, asseverar qual será o resultado. Manda a prudência ser paciente e esperar o veredicto oficial. Só então conheceremos o sabor do molho que regará as mazelas nacionais pelos próximos anos.

Com impeachment ou sem ele, problemas gigantescos ‒ acumulados, não tratados e amplificados nestes tresvairados anos ‒ terão de ser enfrentados. Não há como escapar. Não é possível empurrar o futuro cada ver mais pra diante. Um dia, ele acaba chegando, e as bombas que não tiverem sido desarmadas perigam rebentar em nossas mãos. Os pavios estão acesos.

Os senadores têm, neste momento, grande poder e imensa responsabilidade. A decisão que o colegiado tomar não eliminará, por magia, as adversidades que nos afligem, mas certamente definirá o modo como serão abordadas. A sabedoria popular diz que não se deve trocar o certo pelo duvidoso. No entanto, quando o certo ‒ falo dos fatos e gestos políticos destes últimos anos ‒ é tão calamitoso, mais vale apostar no duvidoso. Há sempre uma chance de a coisa pública deixar de ser tratada tão indecorosa e tão catastroficamente.

Cena da Idade Média by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Cena da Idade Média
by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Dado que ainda não atravessamos o túnel do impeachment, quero usar este espaço para tecer considerações sobre a política de quotas. Aprendemos na escola que o feudalismo era o sistema social vigente na Europa medieval. Os manuais ensinam também que essa arquitetura social começou a se extinguir meio milênio atrás e que a Revolução Francesa assestou-lhe o golpe final.

Assim mesmo, no Velho Continente, sobrevivem marcas de estratificação social. Nações do norte vivem de maneira mais igualitária, com diferenças sociais pouco acentuadas. À medida que se caminha para o sul da Europa, desigualdades sociais tornam-se mais e mais visíveis. Portugal e os países da orla mediterrânea estão a anos-luz do igualitarismo escandinavo. A sociedade brasileira descende, em linha direta, desse sistema desigual. Herdou uma estrutura hierárquica que, embora não diga seu nome, guarda traços evidentes de feudalismo latente.

Privilégio é o modus operandi. A palavra não desmerece a etimologia: privilégio é lei privada. O que é vedado à massa dos cidadãos comuns pode ser tolerado quando praticado por personagens do andar de cima. Nosso país foi fundado ‒ e funciona até hoje ‒ com base em regras díspares e desequilibradas. De saída, o sistema começou torto, com a partilha da nova terra em capitanias distribuídas entre os amigos do rei. Faz quinhentos anos que a essência é a mesma.

Garante-se tratamento especial a presidiários conforme o grau de estudos de cada um. Doutores, ainda que condenados por crime pesado, terão direito a cela e a tratamento carcerário diferente do que se dispensa ao populacho. Deputados, senadores e outros eleitos do povo, ainda que acusados de crimes repugnantes, escapam à justiça comum. Serão julgados em foro especial, não misturados à plebe. Pois essa hierarquia entre castas de cidadãos, que nos parece perfeitamente natural, é inconcebível em países mais adiantados.

Faz já algum tempo que, numa tentativa canhestra de diminuir desigualdades, surgiram sistemas ditos de quotas. É solução perniciosa, em que se pretende curar um mal provocando outro. Tenta-se combater estragos causados por privilégios ancestrais criando… novos privilégios. Pior que isso, quotas são às vezes baseadas na raça do cidadão, conceito pra lá de vago entre nós.

Operários, obra de 1933 by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

Operários, obra de 1933
by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

A princípio, considerou-se que a autodeclaração racial bastasse para separar cotistas dos demais. Com o passar dos anos, a imprecisão inerente à própria definição de raça abriu brecha para falsas declarações. Ainda outro dia, um cidadão houve por bem apresentar numerosos laudos assinados por dermatologistas para demonstrar que, pelo critério de coloração de pele, podia ser enquadrado em determinada quota racial. O Itamaraty já criou um mui oficial Comitê Gestor de Gênero e Raça. Estamos pisando terreno minado, que evoca períodos sombrios da História. Comitês encarregados de controlar a raça de cidadãos existiam na Alemanha nazista, de nefasta memória.

Mais vale garantir a todos os cidadãos um padrão elevado de Instrução Pública. Nosso sistema de quotas nada mais é que confissão de fracasso da Educação Nacional. Para banir nossos renitentes resquícios de feudalismo, ainda temos longo caminho a percorrer.

2 pensamentos sobre “Impeachment e quotas

  1. Estava aqui pensando.
    Amanhã a Dilma terá 30 minutos para falar o que quiser, prorrogado por mais 30 minutos, antes de começar a ser inquirida sobre as “pedaladas”.
    Em seguida Ministro Lewandowisk, Presidente da sessão, fará as primeiras indagações abrindo a palavra aos senadores inscritos, sendo a senadora Kátia Abreu, aliada, a primeira a falar.
    Como foi divulgado que o PT está fazendo um “filme” do episódio estou com a impressão que a Dilma vai fazer um senhor jogo de cena e, nos espaço destinado a responder as primeiras indagações da senadora aliada Kátia Abreu, irá renunciar para não ser “condenada injustamente como se deu com Jedus Cristo”, frustrando os senadores que iriam inquirí-la, e saindo ainda como heroína e defensora do povão.
    Esse deve ser o objetivo e poderá ser o script final do filme

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    • Cá entre nós, Ricardo, se tivesse um pingo de dignidade, a doutora já teria renunciado há meses. Teria saído pela porta grande, no dia e na hora em que tivesse decidido. O gesto não apagaria seu governo desastroso, mas a personagem entraria para a História como uma espécie de Jânio Quadros, governante que já foi acusado de ser bebum, esquizofrênico, errático, ineficiente, mas nunca desonesto.

      Mas, coragem! Tudo ainda não está perdido! Se a doutora renunciar antes que a despachem, será melhor para todos. Pouparemos tempo e o estresse diminuirá. Tivesse ela saído seis meses atrás, a foto teria ficado mais bonita. Assim mesmo, mais vale renunciar agora que ser destituída ‒ vergonha suprema.

      Diferentemente do que pretendem alguns, o parlamento (tanto a Câmara quanto o Senado) têm tanta legitimidade quanto o presidente da República. Todos foram eleitos pelo voto direto. Acho até que o Congresso representa melhor a vontade popular. Afinal, a presidente recebeu o voto de somente metade dos eleitores.

      Num regime parlamentarista, o presidente costuma ter o poder de dissolver o Congresso, mandar todos para casa e convocar novas eleições. No regime presidencialista que vivemos, é o contrário: cabe ao Congresso destituir, se for o caso, o presidente. São as regras. Só os perdedores veem aí quebra da ordem constitucional.

      Que se vá e que não volte nunca mais. Nem a doutora nem a turma dela.

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