José Horta Manzano
Papa Francisco foi entronizado. Uma situação bizarra, em que dois pontífices coexistem, um já aposentado e outro na ativa. Quem tem menos de 500 anos de vida ― e acredito que seja o caso de todos nós ― nunca viveu uma situação semelhante.
A História já registrou momentos confusos, quando dois homens reivindicavam o mesmo trono, ambos convictos de representar a autoridade suprema da Igreja. Cada um considerava o outro um antipapa. O cristianismo chegou até a conhecer três papas ao mesmo tempo. Mas isso já faz muito tempo, muito mesmo. O último capítulo desse cisma desenrolou-se há 600 anos.
Cada país, cada povo, cada religião, cada confraria, cada clube tem suas regras. Ainda que nenhum caso parecido tenha ocorrido nos últimos séculos, a doutrina da Igreja não impede o Sumo Pontífice de renunciar a seu cargo. As regras, portanto, não foram infringidas.
A cada função correspondem rituais que lhe são inerentes. Representar um grupo é encargo cerceado por normas explícitas. Até reis e dirigentes absolutistas costumavam respeitar uma certa liturgia. Caso algum detalhe do cerimonial não esteja escrito em papel quadriculado, vale o bom senso. Certas quebras de protocolo podem até ser divertidas e inócuas. Em geral, são aceitas de bom grado. Já outras transgressões pegam mal.
Centenas de chefes de Estado, primeiros-ministros, presidentes e outras personalidades viajaram a Roma estes dias. Foram todos marcar presença. Coube a cada um deles levar a homenagem de seu país ao novo chefe do Estado do Vaticano. Cerca de 150 países enviaram representantes para a entronização do papa.
Não deveria passar de uma visita protocolar, algo como dar bom-dia ao vizinho. Muitas vezes, preocupados com nossos problemas quotidianos, não temos a menor vontade de saudar vizinho no elevador. Mas faz parte do jogo. Todo jogo tem suas regras.
Espantosamente, alguns dos visitantes ultrapassaram os limites fixados pelo protocolo. Por sorte, não foram muitos. Mas dois deles extrapolaram. São justamente pessoas importantes em seus respectivos países.
Cristina Fernández de Kirchner, presidente da vizinha República Argentina, foi uma delas. Com uma das mãos, ofereceu ao homenageado uma cuia de chimarrão. Sem cerimônia, aproveitou para estender a outra mão com um pedido ao Papa Francisco: solicitou seu apoio no diferendo que a opõe ao Reino Unido a propósito das Ilhas Falkland/Malvinas. Por sorte (ou por pudor), os fotógrafos não registraram nenhum tapinha nas costas.
Foi como se a senhora Fernández de Kirchner dissesse: «Olhe aqui, Santidade, o senhor pode até ser papa, mas não deixa de ser argentino. Portanto, fique com esta cuia e me ajude a agregar aquele arquipélago ao nosso território. Meu futuro político depende disso». Que falta de classe! Pior ainda quando se sabe, pela imprensa do país hermano, que a convivência entre a “presidenta” e o então cardeal foi áspera.
Dilma Rousseff, presidente da República Federativa do Brasil, foi ainda mais longe. Não ousou dizer na cara do Papa Francisco o que queria, mas fez chegar-lhe um recado pelos jornalistas. Antes mesmo que o novo chefe da Igreja assumisse o cargo oficialmente, Dilma deu-lhe, por caminhos tortuosos, uma lição (não solicitada) sobre como conduzir o rebanho. Instou o novo pontífice a procurar compreender as «opções diferenciadas das pessoas»(sic).
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Dizem que o poder inebria e que, às vezes, chega a cegar. Quando é exercido por pessoas pouco preparadas, a coisa é ainda pior. De um convidado para uma homenagem, espera-se que venha com os braços cheios de presentes e que se retire com as mãos vazias. Choradeira tem hora. Onde já se viu fazer pedidos públicos ao homenageado do dia? Tem cabimento dar-lhe lições de bem governar? O comportamento das duas senhoras foi ousado e grotesco. Deram, mais uma vez, mostra de absoluta falta de tacto. Há hora e lugar para tudo, mas elas não leram o manual.
A língua portuguesa tem muitas palavras em vias de extinção, por mera falta de uso. A atitude da chefe do Executivo de nosso País comprovou a obsolescência de um desses termos: recato. Faz muita falta a nossos mandachuvas.
Em castelhano, por acaso, a palavra é a mesma.