O teto da igreja

by Gilmar de Oliveira Fraga (1968-), desenhista gaúcho

José Horta Manzano

Parece que, no Brasil, a gente só toma consciência da degradação quando é tarde demais. O incêndio do Museu Nacional, alguns anos atrás, causou comoção na sociedade. Pouca gente sabia que aquele palácio, além de haver abrigado reis e rainhas, encerrava a maior parte da escassa memória nacional. Na fogueira daquela noite, só não se perdeu o que era de pedra, como o meteorito Bendegó, que despencou no céu baiano e lá foi encontrado no século 18. O resto ardeu, virou pó, não volta mais.

Dirão os cínicos: “Quem precisa daquelas velharias, se a IA pode reconstituir tudo, tim-tim por tim-tim?” É, pode-se comparar com o(a) namorado(a) que um dia se vai mas deixa uma foto. Ainda que o retrato seja um holograma em tamanho real, com a boca que se mexe e os braços que se abrem, será sempre uma imagem eletrônica, fria de temperatura e de calor humano. Por minha parte, dispenso a IA e fico com o original.

Aconteceu agora outra desgraça. Desta vez foi na Bahia e a vítima foi a Igreja de São Francisco de Assis, no Pelourinho, templo que também responde pela preciosa alcunha de Igreja de Ouro (ou Igreja do Ouro). Além de ser tombada pelo Iphan, foi eleita uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, junto com outras 6 construções espetaculares espalhadas no mundo todo. Apesar dessas credenciais, parte da alvenaria do teto desabou semana passada. Deixou um morto e meia dúzia de feridos. A igreja continua de pé mas, como se vê, está literalmente caindo aos pedaços. Convém não protelar o início de uma reforma geral das estruturas.

Ao tomar conhecimento do desastre, Lula da Silva aproveitou o primeiro microfone que lhe ofereceram para se pronunciar sobre o assunto. Lamentou o ocorrido e disse que o problema é a facilidade com que se tombam edifícios sem se preocupar em saber se a cada tombamento corresponde uma dotação destinada à manutenção.

Sua Excelência tem razão. O bom senso recomenda que, a cada nova incumbência que se dá ao poder público para zelar por um edifício, deve corresponder a respectiva dotação financeira. É assim que, num mundo ideal, as coisas funcionam. No Brasil, infelizmente, muitas autoridades vivem num país de fantasia, como Alice do outro lado do espelho. Tomba-se o edifício, auferem-se os louros da vitória da boa causa. Mais tarde, é só quando o palácio queima por falta de sprinklers (chuveiros automáticos) ou o teto desaba por falta de manutenção que o mundo vai perceber que não havia verba. Tarde demais.

Lula da Silva tem razâo, mas faltou ir até o fim do raciocínio. O presidente não é um cidadão como os outros. Ele pode mais do que a maioria de nós. Só reclamar da falta de verba, podemos você e eu, mas ele tem de ir além. O bom discurso teria que apontar o problema e a solução.

Sua Excelência tinha de ter dito algo assim: “Amanhã vou encarregar meu ministro da Cultura de preparar um projeto de lei vinculando todo tombamento – municipal, estadual ou federal – à garantia de uma dotação para a respectiva manutenção. Sem verba, não se fará mais nenhum tombamento.”

Pronto, assim o discurso teria sido mais produtivo do que a simples reclamação estéril do cidadão desiludido. Teria mostrado que o bom presidente não foi eleito somente para se lamentar e chorar em público, mas também – e principalmente – para resolver problemas. Ele sempre pode mais que nós.

Darwinismo social

José Horta Manzano

Semana passada, o Estadão publicou editorial intitulado Darwinismo Social de Bolsonaro.  Me pareceu excelente definição do modo malvado e mesquinho com que o capitão espezinha as camadas mais humildes da população. É aporofobia(*) pura exercida por um indivíduo de espírito fundamentalmente escravagista.

O Darwinismo Social é doutrina impiedosa, que não cabe em nosso modelo ocidental de democracia. É parente próximo do Eugenismo, que preconiza o abandono – ou até a eliminação – dos elementos mais frágeis da sociedade.

A amputação de 60% da verba destinada ao programa Farmácia Popular está em perfeita sintonia com a ideologia bolsonárica: vence o mais forte, os fracotes que se lixem.

Na mesma linha está o veto presidencial do aumento da verba para a merenda escolar – que está congelada há 5 anos (1 ano de Temer mais 4 do governo atual).

Em numerosas ocasiões, especialmente nos momentos mais agudos da pandemia, Bolsonaro deixou claro seu desprezo pelos cidadãos que mostravam ter medo de apanhar a doença. Caçoou dos que morriam de falta de ar. Tratou de maricas os que se vacinavam. Exortou o bom povo a deixar de lado a vacina e optar pela cloroquina.

São gestos que casam com a doutrina do super-homem e da vitória dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, exatamente como na selva de Tarzan. Não há pensamento mais tóxico e mais explosivo para tornar inviável a convivência num país tão desigual como o nosso. O “pensamento” bolsonárico é poderoso freio a nosso avanço no processo civilizatório.

Um dos sinais mais significativos da transformação de uma sociedade primitiva em uma sociedade avançada e democrática é justamente o cuidado dedicado a seus membros mais frágeis. No caso do Brasil, a franja vulnerável é constituída pelos miseráveis, pelos famintos, pelos menos favorecidos, pela infância, pelas minorias étnicas e raciais. São justamente os que precisam da merenda escolar e da Farmácia Popular.

Cortar verbas que deveriam ser dirigidas aos que vegetam nas bordas da nação equivale a arremessar esses indesejáveis ao mar e seguir o barco. Cada ato emanado desse governo vem encharcado de injustiça.

É inacreditável que um em cada três eleitores ainda apoiem a reeleição desse indivíduo. Me recuso a acreditar que um terço dos brasileiros concordem com esse Darwinismo Social. Acho que eles, principalmente os que se consideram cristãos, não entenderam o que está ocorrendo.

(*) O termo aporofobia define o ódio e o repúdio à pobreza e aos pobres.

Ciência, devotos e rebotalho

José Horta Manzano

93%
Esse é o percentual da verba cortada pelo governo de Jair Bolsonaro para gastos com estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão – a comparação é com os três anos imediatamente anteriores.

Dados levantados pela BBC News Brasil mostram que, nos três anos anteriores (2016 a 2018), os investimentos nessa área foram de R$ 31,1 milhões. Ja na gestão Bolsonaro (2019-2021), foram R$ 2,1 milhões.
A notícia é do portal G1

Os devotos
Como provam os números levantados pela BBC, temos um presidente que, enquanto suborna parlamentares, foge da ciência. E atrás dele, vai a corte obediente, exatamente como nos tempos do “Ancien Régime”. De fato, quando o rei Luís XV se deslocava de Paris a Versailles, por exemplo, toda a corte ia junto – centenas de pessoas, com armas e bagagens. Todos diziam amém ao rei, pois dele dependiam.

Quando menciono os “devotos” de Bolsonaro, que nada mais são que a versão 4.0 da corte dos Luíses, não me refiro unicamente aos que se enrolam na bandeira para aclamar o “mito”. Incluo os personagens que têm mais destaque na vida nacional. São todos aqueles que, por ideologia ou interesses variados, fazem parte dos “agregados” do clã presidencial expandido: militares palacianos, parlamentares bolsonaristas, ministros de ocasião, blogueiros remunerados, e tanta gente mais.

A bandeira
Essa história de aparecer em passeatas e manifestações enrolado na bandeira brasileira não é costume habitual em outras partes do mundo. Bandeira foi feita para ondular ao vento, solta, livre, altaneira, desprendida de agarras humanas.

Esses que adquiriram o bizarro hábito de se enrolar nela, como se manipulassem um trapo ou um cobertor, deveriam saber que, se fizessem esse gesto nos tempos da ditadura militar (cuja volta eles reclamam ingenuamente), iriam direto para a prisão.

Os militares eram – imagino que ainda sejam – ciosos do bom uso dos símbolos nacionais. A execução do hino e a exposição da bandeira e do brasão de armas eram objeto de regras precisas e minuciosas. A cadência (velocidade) de execução do hino é normatizada, assim como a tonalidade (fá maior).

Querem um exemplo das limitações da exposição da bandeira? Nos anos 1960, surgiu um movimento global de liberação dos costumes. Muitas proibições caíram. Na Grã-Bretanha, popularizou-se o uso de roupa com o desenho estilizado da bandeira. Não me consta que isso tenha causado escândalo. Já no Brasil daqueles anos, ninguém ousaria estampar bandeira na camiseta. Sair à rua enrolado no pavilhão nacional dava cadeia. Direto.

Para entrar em conformidade com o regulamento, os que apreciam sair às ruas enrolados em bandeira deveriam abandonar o pavilhão nacional e criar um uniforme qualquer que os distinguisse. Sugiro um retalho de tecido tamanho bandeira – de flanela no inverno, de algodão no verão.

A cor tanto faz, mas é indispensável que haja um imenso B desenhado atrás. O B, é claro, se refere a Bolsonaro. Para os mais exaltados, pode até lembrar o nome de nosso país (sem ferir as regrar que proíbem o uso da bandeira como peça de vestuário). E pode ainda, para os não-devotos, evocar a letra inicial da palavra que designa o excremento dos bovinos. Deixa a todos sorridentes. Não é uma maravilha?

Rebotalho
Há uma emissora paulista de rádio, antiga, tradicional, que chegou a ter certa importância. Um dia, por razões que ignoro (embora desconfie), tornou-se abertamente bolsonarista, daquelas que preferem fechar os olhos para todos os horrores da administração atual, como se não existissem. Agem como blogueiros de aluguel.

Essa empresa acaba de contratar, como comentarista, o doutor Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente refugado alguns meses atrás. Salles caiu por ter sido acusado de estar acumpliciado com contrabandistas de madeira extraída ilegalmente da Amazônia.

Depois que ele saiu de cena, não se ouviu mais falar do andamento do respectivo processo penal. Talvez agora, com sua volta aos holofotes, alguém se lembre de desenterrar o assunto. (Se é que a dita estação de rádio ainda conta com alguma audiência além dos devotos do capitão.)

Viva a ignorância!

José Horta Manzano

Assim como o melhor dos governos tem seu lado sombrio, o pior deles tem também um lado luminoso. Se o período militar foi sinistro em inúmeros aspectos, teve também alguns lampejos. Uma herança das boas é a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Criada em 1973, em pleno governo do general Medici, ela pode hoje ser definida como uma multinacional da pesquisa.

A Embrapa é a estatal brasileira mais importante. Conta com 10 mil funcionários incluindo 2.500 pesquisadores. Entre estes últimos, 84% são titulares de doutorado ou mesmo pós-doutorado obtido em universidades nacionais e estrangeiras. A empresa, presente em todo o território nacional, tem antenas em numerosos países com os quais colabora e troca informações científicas.

Seus trabalhos permitiram introduzir a agricultura no cerrado, bioma que era antes considerado improdutivo e que hoje responde por metade de nossa fabulosa produção de grãos. A tecnologia gerada pela empresa tornou possível multiplicar por quatro a oferta de carne bovina e suína. A produção de frango pôde ser ampliada em 22 vezes.

De importador de alimentos básicos, o Brasil alcançou o patamar de potência exportadora. A Embrapa goza de respeito planetário por seu grau de excelência. Suas pesquisas cobrem todos os biomas brasileiros – Amazônia, Pantanal, cerrado, semiárido, regiões temperadas.

Se o distinto leitor leu o título deste escrito, deve estar se perguntando onde está a ignorância. Pois ela vem agora. Acaba de sair nota informando que o governo federal pretende cortar perto de 50% do orçamento da Embrapa para o ano de 2020. Metade do que é necessário pra permitir a continuidade da pesquisa agropecuária brasileira! A notícia é angustiante. O Brasil não é potência econômica. Está longe de ser gigante bélico. Na política mundial, é anão. O único ponto em que somos globalmente importantes e respeitados é na pesquisa e na produção agropecuária. Em total desvario, o governo não consegue enxergar a importância disso.

Há que constatar que, mesmo com doutor Bolsonaro acamado, a guerra contra o conhecimento continua. Fica claro que a equipe que rodeia o presidente está afinada com ele. A ausência do chefe não é sinônimo de trégua. A obra de demolição segue adiante. No Planalto, continuam todos fiéis ao propósito de impedir que o Brasil suba de patamar. Que seja na difusão da cultura, no ensino universitário ou na pesquisa científica, a ordem é cortar, impedir, barrar, cercear.

O lulopetismo não foi tão longe. O atual governo é uma ode à ignorância.