Zero de zero

José Horta Manzano

Em 1964, uma tibetana deu à luz uma menina num acampamento de refugiados situado em território indiano. Ninguém se preocupou em registrar a criança em cartório. Sequer a data de nascimento foi anotada. E a vida seguiu.

Chacoalhada de cá pra lá na primeira infância, a menina acabou sendo adotada por um casal estrangeiro. Levaram a garota para a Suíça em 1971. Na falta de data exata de nascimento, decidiu-se anotar 1.1.1964. E assim ficou. Capricorniana por obrigação, a moça foi crescendo sem maiores problemas.

Como têm feito os demais países, já faz algum tempo que a Suíça parou de emitir passaportes de modelo antigo. Os novos são biométricos, padronizados conforme as diretivas internacionais. Nossa refugiada, hoje com 52 anos, precisou renovar seu documento. Seguiu os trâmites habituais.

Por artes da programação informática, o documento veio com nova data de nascimento: 0/0/1964. Como é que é? Isso mesmo, assim dizia o papel. Passado o primeiro momento de estupor, a cidadã ponderou que não era possível conviver com um dado tão estapafúrdio. Resolveu pedir alteração.

bolo-3Foi uma maratona. Teve de fazer requerimentos, redigir petições, preencher formulários, dar explicações a funcionários atônitos. Ninguém sabia o que fazer. Descobriu-se que o problema vinha do registro de casamento da moça, onde o escrivão havia anotado somente o ano de nascimento acompanhado da menção «data desconhecida». Para computador, tudo o que é desconhecido tem valor igual a zero, donde a data bizarra.

Depois de muita luta, veio a luz: não fazia sentido manter aquela data estranha. A antiga refugiada consultou a mãe, velhinha, mas ainda lúcida. Cogita daqui, conjectura dali, chegaram à conclusão de que 28 de março era uma boa data ‒ em todo caso, melhor que zero de zero. E assim ficou. Nossa heroína, agora “remoçada” três meses, completará 53 anos no fim de março. Parabéns a ela.

Passa passa três vezes

José Horta Manzano

Na quinta-feira 25 de março de 1999, Jiang Zemin, presidente da China, estava na Suíça em visita oficial. A recepção havia sido preparada em detalhe e tudo corria bem. Cordões de isolamento, crianças agitando bandeirinhas, percurso em limusine dessas que começam aqui e terminam na esquina, autoridades sorridentes, flores por toda parte.

Assim que a comitiva parou na praça do Palácio Federal, em Berna, bem em frente ao edifício que abriga o governo e o parlamento suíço ― o equivalente da brasiliense Praça dos Três Poderes ― a coisa subitamente desandou.

Vaias, gritos, apitos se fizeram ouvir. Do alto dos prédios desenrolaram-se bandeiras do Tibete. Cartazes com os dizeres «Free Tibet» apareceram por todo lado. As autoridades suiças, que não esperavam por essa, não sabiam se riam ou choravam.

O presidente da China teve um ataque de fúria. Rispidamente, perguntou à presidente da Confederação Suíça se ela não tinha capacidade de controlar seu próprio país. E acrescentou: «Vocês acabam de perder um bom amigo».

Assim mesmo, o resto do programa foi cumprido. Mas o mandachuva chinês continuava muito chateado. Como é costume, veio a troca de presentes. O governo suíço ofereceu ao chinês uma caixinha de música de grande valor, toda esculpida e pintada à mão, uma maravilha mecânica. E o visitante, depois de examinar o presente, ousou: «Ela parece funcionar melhor que a segurança do país».

A visita continuou num clima azedo. Desde então, nunca mais nenhum dirigente máximo chinês visitou a Suíça em caráter oficial.

O estrangeiro, pouco afeito à liberdade de opinião de que gozam os cidadãos europeus, não conseguia entender que perigosos manifestantes pudessem ter sido deixados à vontade. Em seu país, esse tipo de acontecimento é inimaginável. Antes de eventos importantes, tomam-se as devidas providências para esconder a miséria e neutralizar eventuais manifestantes.

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Mata atlânticaNa terça-feira 17 de outubro de 2006, Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do Brasil, assinou um manifesto no caderno opinião da Folha de São Paulo. O texto, tecido em tom épico e voluntarioso, rechaçava toda e qualquer intervenção estrangeira em assuntos referentes à floresta amazônica. Assegurava que o Brasil era suficientemente grandinho para cuidar sozinho de seu território. E terminava com uma afirmação pra lá de ufanista: «A Amazônia é um patrimônio do povo brasileiro, e não está à venda».

Em 1° de agosto de 2008, menos de 2 anos após o inflamado libelo de nosso inefável chanceler, foi criado, por decreto, o Fundo Amazônia. Como qualquer um pode conferir no próprio site do Fundo, ele se propõe a apoiar projetos que visem a gerir, controlar, monitorar, fiscalizar, manejar, desenvolver, zonear, ordenar, conservar, recuperar o território amazônico. Os verbos utilizados são exatamente esses.

Ao contrário do que a fala do chanceler dava a entender, o Fundo aceitou doações de governos estrangeiros. Compreende-se que, embora a Amazônia não esteja propriamente «à venda», aparecendo alguém com dinheiro na mão, dá-se sempre um jeitinho e aceita-se de bom grado. O Estadão de 6 de maio último nos dá conta do que chama “vexame amazônico”.

Ora, basta de brincadeira. Se o chanceler brasileiro, o inenarrável Amorim, declarou que o Brasil podia cuidar sozinho de seu patrimônio, é incongruente ter aceitado doações de governos estrangeiros para esse fim. Quem aceita ajuda financeira torna-se, até certo ponto, devedor. O provedor tem direito a explicações sobre o uso do dinheiro.

Mas o pior não é ter cantado de galo para, em seguida, render-se ao maná financeiro aportado por alemães e por noruegueses ― como diria Padim Ciço, todos louros de olhos azuis. O pior mesmo é que, nos últimos cinco anos, a destruição da floresta amazônica continuou impávida, a zombar dos milhões angariados pelo Fundo.Desmatamento

Está feita a prova de que, com ou sem Fundo Amazônia, com ou sem aporte de dinheiro de governos estrangeiros, o governo brasileiro continua mostrando absoluta incapacidade de controlar seu próprio território. «Tem mulher e filhos que não pode sustentar», como costumávamos cantar.

Daqui a um século, quando nada mais sobrar da antiga floresta, restarão a nossos trinetos os olhos para chorar. A arrogante frase do insigne ministro será então citada como exemplo de nacionalismo tosco, míope, vazio e daninho que terá contribuído para uma catástrofe de proporções planetárias.