O presidente e o golpe

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 maio 2020.

Uma bela tarde de 2010, Lula da Silva subiu ao palanque de Dilma Rousseff, então candidata à Presidência. Deitaram ambos copioso falatório. Com palavras agressivas, criticaram a imprensa, a oposição, os jornalistas. Ridicularizaram os opositores e desclassificaram os que não pensavam como eles. A intenção não era expor propostas de governo – desse assunto pouco ou nada se falou. O propósito maior era demolir tudo e todos que estivessem do outro lado da imaginária linha do nós x eles.

Lá pelas tantas, Lula ousou: «Nós não precisamos de formadores de opinião. Nós somos a opinião pública!». Um atrevimento. Era a confirmação explícita dos eflúvios absolutistas embutidos na ideologia lulopetista. Àquela época, a repercussão da palavra presidencial era modesta. Internet não tinha o alcance nem o vigor de hoje. Além disso, dois mandatos tinham deixado claro que não se podia levar a sério as bravatas do chefe. Por causa disso, a história de ‘nós somos a opinião pública’ morreu ali, sem direito a debates nem análises. A frase teve o destino inglório que deveriam ter todas as falas inconsequentes: foi para a lata do lixo.

Ironicamente, o socorro do Brasil acabou vindo da absoluta inépcia da presidenta. A doutora tanto forçou, que a corda arrebentou. Com isso, seu mandato foi para o beleléu. Com o impeachment, conseguimos estancar a escalada do besteirol presidencial e da rapina orquestrada.

Nas eleições de 2018, o contragolpe tinha de vir. E veio violento. Já durante a campanha, Jair Bolsonaro lançou sinais anunciadores de como seria sua presidência, mas ninguém ligou. O cenário já se podia até entrever quando o candidato soltou um tuíte estranho: “Nosso partido é o povo!”. Estava anunciada a inclinação populista da gestão que estava por vir, espécie de lulopetismo de sinais trocados. Na época, ninguém calculou qual seria a extensão do drama.

Foto: Uol/Folha

O que tinha de acontecer, aconteceu. O candidato esquisito, incapaz de expor o próprio programa, foi eleito. Não há milagre: candidato esquisito tende a exercer governo esquisito. Seu programa, de tão vago, não se consegue até hoje decifrar; más línguas dizem que a única diretiva é manter o poder a todo custo. No intuito de preencher os vazios e desviar a atenção do que interessa, o Planalto nos inunda de ruídos periféricos, slogans, falatório e palavras de ordem. Essa colcha de retalhos traz mensagens desconexas e discordantes. O que hoje é, amanhã poderá deixar de ser. O que se diz agora pode acabar desmentido logo mais.

Embevecido com a atenção que prestam a seu palavrório, o presidente se sente livre e cria asas. Diz o que lhe passa pela cabeça. Lança palavras ao ventilador. A cada rodada, o tom sobe e as palavras ganham força e vigor. A plateia acompanha. Uns se sentem indignados; outros, nauseados; alguns ainda, encantados. Analistas tentam encontrar sentido onde não há lógica. Põem-se a refletir sobre o significado profundo; buscam entrever mensagem criptada; tentam ponderar o que não tem nexo. É inútil. Um único recado é claro e inequívoco: doutor Bolsonaro não enjeitaria iniciar, aos 65 anos, carreira de ditador; afora isso, não há que remexer mais fundo. O zigue-zague presidencial é uma não tática.

Sabemos todos que o desejo do doutor não se realizará. Primeiro, porque nossas instituições funcionam; em seguida, porque uma reforma súbita e radical do regime não interessa às elites que realmente detêm o poder. Não estamos mais em 1964. A ameaça vermelha, então real, hoje só sobrevive na imaginação de mentes anacrônicas. Golpe e refundação do regime é ruim para todos. Nos negócios, trava o bom andamento; nas Forças Armadas, embaralha promoções; nas exportações, gera boicote; na vida do cidadão comum, instala ambiente de desconfiança. Em resumo, atrapalha muito mais do que ajuda. Portanto, pra serenar ânimos e garantir sossego, o melhor favor que a mídia séria pode fazer ao país é baixar a bola e dar à fanfarronice presidencial a importância que ela merece, ou seja: nenhuma.

Fim do imposto sindical

José Horta Manzano

Quem fica parado é poste. E isso se não for derrubado por uma Lava a Jato qualquer. No Brasil, as leis trabalhistas pararam no tempo. Consolidadas setenta anos atrás, aguentaram firme, contentando-se com um remendozinho aqui, outro ali. Ninguém teve coragem de reconsolidar o conjunto, que já estava virando uma teia de fios emaranhados. Nem o governo dito ‘popular’ (que eu classifico como populista e desonesto) teve a ousadia de encarar uma refundação. Refundação, eta palavrinha da moda!

Pois bem, depois da destituição da pior presidente que esta triste república teve no último meio século, está no trono um substituto com mandato tampão. Ciente de que não há tempo hábil para deixar hidroelétricas, usinas atômicas ou transposições fluviais de lembrança, decidiu levar adiante a maior recauchutagem das leis trabalhistas desde o tempo do velho Getúlio.

Doutor Temer terá seus defeitos e suas culpas, isso é fato indiscutível. No entanto, tem o mérito de ter ousado mexer num vespeiro que havia paralisado todos os seus predecessores. Embora sua reforma não é seja perfeita, é um enorme passo na boa direção.

Quem, como eu, está acostumado a conviver com regras trabalhistas de outros países, acaba se perguntando como é possível que os assalariados brasileiros tenham podido se submeter durante tanto tempo à camisa de força que eram as leis nacionais.

Tomemos as férias, por exemplo. Até agora, só se podiam fracionar os 30 dias em dois períodos sendo que nenhum deles seria inferior a 10 dias. Por que tanta limitação? Na Suíça, o empregado costuma ter direito a 20 dias úteis de férias. Pode fracioná-las como bem entender ‒ sempre de comum acordo com o empregador, naturalmente. É muito prático e favorável para o trabalhador.

Numa semana com feriado no meio, por exemplo, o funcionário tirará quatro dias de férias. Com isso, sairá numa sexta-feira à noite e só voltará ao batente nove dias depois. Terá gasto quatro dias do capital de férias e gozado nove. Vantajoso, não? Muitos se valem desse expediente sempre que há algum feriado encastrado no meio da semana. Tirar férias «picadinhas» é prática comum.

Outra particularidade brasileira que deixa qualquer estrangeiro boquiaberto é a multa imposta ao empregador quando demite um funcionário. É resquício de uma visão estática da sociedade. Assim como um casal que se divorcia não paga multa recíproca, não há razão para manter essa prática quando uma relação laboral se desfaz. Empregador e empregado não juram fidelidade eterna ao pé do altar, pois não? Sem eliminá-la totalmente, as novas regras flexibilizam um pouco essa bizarrice. Já é isso. Vamos encorajar a mobilidade social, que diabos!

A maior conquista, sem sombra de dúvida, é o fim do imposto sindical obrigatório. Onde é que já se viu, num país de trabalhadores explorados e mal pagos, subtrair um dia de trabalho de cada um para sustentar sindicato? Era uma aberração. Dizem que é vestígio do fascistoide regime varguista. Não tenho tanta certeza. Os bilhões gerados por esse processo fortalecem os sindicatos. Estes, montados numa grana firme, engrossam a voz e podem tornar-se pedra no sapato do governo. Não era essa a intenção do legislador ao instituir a taxa obrigatória.

As leis trabalhistas vão ser alteradas em dezenas de pontos. Alguns são importantes; outros, menos. Seja como for, está quebrado o tabu de que relação entre empregado e empregador tem de se ater a regras imutáveis. Lacunas e imperfeições da atual reforma poderão ser ajustadas mais adiante. Pra frente é que se anda.

Desculpe o transtorno. Estou em reforma.

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não dava mais para adiar uma reforma radical do meu edifício psíquico. O ar de decadência já havia tomado conta de tudo e deixado claro que não adiantaria reestilizar o ambiente. Era preciso derrubar todas as paredes e recomeçar do zero.

Conserto 2Bem que eu tentei continuar convivendo com as velhas estruturas que ainda estavam de pé dentro de mim, mas a verdade inescapável era que minha vida anímica tinha perdido muito de sua funcionalidade. Eu já tinha improvisado alguns remendos de caráter, redecorado ítens de personalidade, feito um puxadinho emocional para acomodar meu desconforto de lidar com tarefas rotineiras. Tinha construído mais um andar para servir de depósito para todos aqueles projetos que eu ia empilhando para quando chegasse o dia certo de realizar. Não adiantou.

Eram tantas divisórias que eu já não podia mais circular livremente. Havia também espaços emocionais que estavam vazios ou subutilizados. O espaço da família, por exemplo, que era gigantesco e imponente, foi se apequenando com o tempo e hoje as visitas são raras. O espaço dos amigos, antigamente o mais frequentado da casa, estava sempre cheio de risos, música e ruído de conversas. Aos poucos, as risadas foram perdendo colorido, a música tornou-se inaudível de tão baixa para não atrapalhar as conversas e estas foram sutilmente se transformando em troca de comentários ocasionais. Depois, os amigos foram rareando e o espaço acabou sendo convertido em balcão de recepção de mensagens eletrônicas, curiosas talvez, mas sem substância para alimentar a alma.

Limpeza 1A cozinha deixou de ser espaço de experimentação. Meus alimentos preferidos, os livros e os discos, foram sendo deixados de lado em função da dificuldade em mastigar e absorver os nutrientes de tantas novas informações. O cardápio repetitivo e a execução burocrática terminaram afugentando convivas em potencial e eu mesma fui ficando cada vez mais inapetente.

O quarto de despejo estava lotado até o teto de raivas impotentes, ressentimentos, mágoas e fantasias de grandeza que eu bordava no passado e nunca tive ocasião de usar. A área dos medos tinha se avolumado e invadido os cantinhos ao redor. Eram muitos: o medo da morte, da velhice, da solidão e, o maior deles, o medo da própria vida. Já não dava mais para abrir as janelas e arejar o ambiente. O odor nauseante de mofo espalhou-se por todo o meu ambiente anímico, trazendo irritação, mau humor e desesperança.

Foi só quando o atravancamento e a sensação de sufocamento atingiram o ponto máximo que a ideia de uma reforma libertadora começou a se delinear. O atulhamento era tão grande que eu inconscientemente havia optado por me encolher, prendendo o diafragma e tentando expandir o mínimo possível os pulmões para não detonar uma avalanche emocional. O medo do soterramento era mais forte do que meu desejo de abrir os braços, esticar o peito, endireitar a postura e reivindicar meu direito a uma cota satisfatória de oxigênio.

Loft 1Vislumbrei o projeto arquitetônico da reforma no exato instante em que o esforço para respirar provocou o destravamento do diafragma. A energia vital recomeçou a circular e meu corpo psíquico começou a vibrar novamente. Resolvi transformar o apartamento numa espécie de loft onde a ausência de barreiras permitiria que tudo pudesse se comunicar com tudo: o espaço dos amigos integrado ao espaço dos ideais de vida, o espaço da vida diretamente conectado ao espaço da arte. A nova cozinha, integrada à sala, vai se transformar na alma da casa. Vou testar novos ingredientes pessoais e uma receita nova de relação a cada dia.

Conserto 1Para restabelecer a funcionalidade do ambiente, todos os medos terão de ser desalojados. Vou doar todas as fantasias irrealizadas para uma instituição de caridade que atenda crianças e jovens. Eles saberão o que fazer com elas e, se julgarem que alguma não tem mais serventia, poderão se desfazer dela com o desapego que eu não pude ter.

Também não haverá mais divisão entre espaços de serviço e espaços sociais. Todos que frequentarem uns estarão autorizados a usufruir dos outros. A inexistência de regras de coexistência e convivência certamente vai devolver todo o dinamismo que me fazia tanta falta. Estou apostando alto na transmutação de todo conhecimento em sabedoria.

Janela 1Do passado, só mantive um estratagema: continuo não querendo que a tecnologia ocupe o lugar do humano no meu psiquismo. Nada de aplicativos de celular para controlar as funções da casa e nada químico para incrementar a sensação de potência orgânica. A natureza vegetal e a natureza humana continuarão sendo meus mais fortes aliados.

Você está convidado a conhecer meus novos recintos anímicos. Vamos organizar uma comilança para celebrar os novos tempos. Traga consigo suas esperanças, sua leveza de alma e sua disposição para o diálogo. As portas estarão sempre abertas para pessoas como você.

Interligne 18h

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.