Armas e homicídios

José Horta Manzano

Semana passada, a Folha de São Paulo reproduziu artigo da BBC sobre mortes por arma de fogo no Japão. A argumentação é realmente interessante. Fica-se sabendo que o japonês que desejar possuir arma de fogo tem de ser paciente porque terá uma via crucis pela frente.

Terá de tomar aulas teóricas, enfrentar exame escrito, provar que é exímio atirador, encarar testes psicológicos e de detecção de dopagem. Vasculha-se passado e presente do candidato: antecedentes criminais e eventual proximidade com grupos extremistas. Parentela, vizinhança e colegas de trabalho também passam por pente fino.

Arma 1Tem mais: é proibido portar armas pequenas, dessas que se podem ocultar numa bolsa ou numa sacola. Somente rifles e espingardas ‒ bem visíveis ‒ podem circular. As raras lojas de armas são pra lá de controladas. Só vendem cartuchos novos mediante devolução dos já utilizados. Todo possuidor terá de apresentar a arma à polícia para inspeção anual. Para coroar, a cada três anos a licença vence e tudo recomeça. Provas, exames, testes e todo o resto.

O articulista atribui o baixo índice de homicídios no país ao severo controle da circulação de armas. De fato, a contagem da Undoc (Agência de Drogas e Crime da ONU) mostra o Japão em lugar de honra. Em 2014, o país registrou apenas 0,3 homicídios por 100 mil habitantes. Para efeito de comparação, assinale-se que no Brasil, no mesmo ano, foram cometidos 24,6 homicídios por 100 mil habitantes. A proporção foi de um japonês assassinado para 82 brasileiros. Os números falam por si.

Não resta dúvida: quanto maior for o contrôle do armamento, tanto menor será a taxa de criminalidade. Assim mesmo, a limitação de posse e circulação de armas não é o único fator. Dou-lhes um exemplo extremo: a Suíça.

Como sabem meus cultos e distintos leitores, todo cidadão suíço do sexo masculino integra o exército nacional. Até alguns anos atrás, a obrigação de servir ia dos 18 aos 50 anos de idade, com cursos anuais de atualização. Hoje as obrigações são menos rigorosas, assim mesmo a ideia de base permanece: todos são reservistas convocáveis a qualquer momento. Para tanto, os homens em idade de servir guardam em casa todo o material militar ‒ uniforme, accessórios e, naturalmente, a arma.

Suíça: porão típico

Suíça: porão típico

Além disso, ou talvez por causa disso, o tiro ao alvo é paixão nacional. Por toda parte encontram-se locais apropriados para treino, como nos filmes policiais. Grosso modo, de cada dois habitantes do país, um possui uma arma de fogo em casa. Se um elevado número de homicídios estivesse na razão direta da abundância de armas em circulação, a Suíça seria um dos países mais perigosos do mundo. De fato, somente nos EUA e no Iêmen há, proporcionalmente, mais armas de fogo.

No entanto, não é o que acontece. As estatísticas mostram que, nessa matéria, a Suíça está no mesmo nível do Japão. Em 2014, o índice de homicídios foi de 0,5 por 100 mil habitantes. Está feita a prova de que a quantidade de armas em circulação não é a única responsável pela criminalidade. Múltiplos fatores entram em jogo.

Os limites da igualdade

José Horta Manzano

Antes da Revolução Francesa, a estratificação da sociedade era rígida. O roteiro de cada um já era conhecido desde o nascimento. Filho de ferreiro se tornaria ferreiro. Filho de príncipe já nascia príncipe. Filho de agricultor seria necessariamente agricultor. O elevador social ainda não havia sido inventado.

Filho de peixe...

Filho de peixe…

Os acontecimentos destes últimos 200 anos aceleraram o ritmo de transformação da sociedade. Embora enguice às vezes, o elevador da ascensão social já existe e costuma funcionar. Há que saber manejá-lo.

Substituído pela indústria, o ofício de ferreiro praticamente desapareceu. Para usar a mesma metáfora, direi que filho de metalúrgico já não nasce predestinado a seguir a profissão do pai. Pode até fazer sucesso no ramo de telecomunicações, por exemplo. (Tivemos, aliás, um exemplo. De notoriedade nacional.) Da mesma maneira, nada impede que um filho de agricultor possa vir a ser doutor.

Estes últimos anos, a busca frenética da igualdade tem levado muita gente a forçar a mão. Certas palavras e expressões ― usadas no dia a dia havia séculos ― foram banidas. Cego, surdo, mudo, preto, aleijado, manco, mulato, velho & companhia são palavras a evitar. A etiqueta hoje manda substituí-las por um equivalente genérico. Mais complicado, um circunlóquio também serve. Seja.

Mas a eliminação de toda menção àquilo que foge à norma não elimina aquilo que foge à norma. Em outros termos: não basta silenciar sobre uma realidade para fazer que ela deixe de existir. Todo agrupamento humano é um conjunto harmonioso de seres diferentes. Por mais que me digam que estou na melhor idade, na terceira idade, na feliz idade ― nada disso me fará rejuvenescer.

Ser mais idoso que a média significa apenas que nasci antes, assim como tantos outros nasceram antes de mim e tantos outros nascerão depois de todos nós. Não deveria ser motivo de vergonha nem de orgulho. Não é qualidade a ostentar nem defeito a esconder. Não há palavra melhor para definir um velho que esta: velho.

O bom-senso indica que assim deveria ser com todas as outras minorias. Infelizmente, não é o que acontece. E é bom não transgredir, porque pode até dar processo. O brasileiro, grande fã de novelas, adora uma intrigazinha. Qualquer picuinha pode terminar num tribunal. Todo cuidado é pouco.

A Constituição de países civilizados costuma dizer que todos os cidadãos são iguais em direito. Em princípio, é frase vazia, que não funciona na prática. Mas continua lá. E, vez por outra, gera efeitos absurdos.

Semana passada, as autoridades do Estado americano de Iowa determinaram que, em nome da igualdade entre cidadãos, os cegos ― ou não-videntes, se preferirem ― estão autorizados a portar armas. O jornal Des Moines Register noticiou. Não estamos falando aqui de pessoas com leve disfunção visual. O direito se estende a indivíduos que não enxergam absolutamente nada.

... peixinho há de ser

… peixinho há de ser

Para mim, não faz sentido. Até para aplicar nobres princípios, como a igualdade de direitos, não se pode fugir ao bom-senso. Se não, chega-se a situações esdrúxulas como o direito de voto que o Brasil concedeu a seus cidadãos analfabetos. A alfabetização do povo é dever do Estado. Que cumpra primeiro seu dever, oferecendo instrução a todos, depois conversamos. Adolescentes e presidiários não têm o direito de votar. Por que analfabetos o teriam?

Há limite para tudo. Permitir a não-videntes portar uma arma de fogo é tão incongruente como seria conceder-lhes uma carteira de motorista.