Um por todos, todos por um

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Minha mãe tinha razão: sou mesmo uma pessoa do contra. Talvez por ser canhota e me ver forçada a reinterpretar imagens em espelho, quase nunca resisto ao impulso de priorizar o lado do avesso na análise dos eventos externos e das emoções que eles despertam nas pessoas normais.

Com a Copa do Mundo de futebol, não foi diferente. Apesar de não ter acompanhado nenhum dos jogos por inteiro e não ser capaz de avaliar tecnicamente o desempenho de cada time, experimentei uma sensação de forte alívio quando o Brasil foi desclassificado e não se registraram reações em massa de fúria dos torcedores brasileiros. Pouquíssimas pessoas de que tenho notícia se deram ao trabalho de culpar o técnico ou a falta de garra de nossos jogadores. Ao contrário, todos os que criticavam a alienação do brasileiro médio ficaram sem interlocutor ao constatarem que a maioria absoluta dos torcedores abriu mão da tradicional passionalidade esportiva. Sinal de maturidade?

Acredito que sim. Ao longo de toda a competição, um fenômeno já vinha chamando minha atenção: todos os ídolos, individuais ou coletivos, mostraram ter pés de barro e foram caindo, um por um. E, assombrosamente, mesmo assim, não sobrou muito espaço para vergonha. O humilde reconhecimento da superioridade do adversário foi, para mim, a grande novidade e a mais agradável das surpresas desta Copa. Concluí que o tempo das seleções de um só homem havia acabado. Outro bem-vindo sinal de aprendizado e amadurecimento? Tomara que seja.

No mesmo sentido, quando, em junho de 2013, pipocaram as primeiras manifestações gigantes de rua, meu coração explodiu de felicidade. Depois de décadas de paralisia, senti que estávamos finalmente nos apropriando do destino do país. Pela primeira vez, reivindicávamos a soberania popular para determinar os rumos que as coisas deveriam tomar mesmo nos assuntos mais comezinhos da nação. Aprendíamos na prática que, sem povo, não há democracia.

A profunda cisão esquizofrênica que se seguiu não esmoreceu meu ânimo. Achava – e ainda acho – que esse era o preço a pagar por termos sido secularmente carneiros conduzidos por gulosos lobos a pastos secos e sem fontes de água. Inevitável que, na ausência de pastores confiáveis, o rebanho se dividisse e hesitasse em qual direção seguir. Tudo o que ansiávamos naquele momento era nos afastar das alcateias, ainda que não soubéssemos discernir de pronto quem era lobo em pele de cordeiro e quem era cordeiro em pele de lobo.

Reduzidos ao nosso tamanho original, estamos agora inexoravelmente nos debatendo com as contradições da pátria sem chuteiras. Nossas graves deformações políticas e judiciárias, assim como nossa falta de infraestrutura cidadã, já não podem ser disfarçadas com nenhum photoshop. A hora agora é a de assumir, para consumo interno e externo, que somos menos belos, menos cordiais e menos inventivos do que julgávamos ser. Um fantástico avanço para a alma nacional, já que a maturidade psicológica pressupõe o fim das ilusões de onipotência.

Sinto que o que está em jogo neste momento ‒ não só no Brasil, nem só na América Latina ‒ é uma quebra de paradigma. Do poder central forte, do sistema de dominação autocrática, estamos migrando para um processo de horizontalização de todas as decisões. Todas as hierarquias estão sendo abolidas, todas as lideranças estão sendo contestadas e todo voluntarismo estrebucha em agonia. O tecido social agora esgarça no sentido vertical porque ainda não havíamos nos dado conta de que era preciso reforçar as fibras horizontais. Com isso, acabamos perdendo flexibilidade nas articulações políticas, religiosas e sociais. Literalmente, dobrar os joelhos diante da autoridade ou cruzar os braços na eventualidade de um impasse passou a ser cada dia mais difícil.

Que tempos de muito choro e ranger de dentes ainda estarão pela frente, não há como duvidar. O que colocaremos no lugar das lideranças? Em quais pares poderemos depositar confiança? Se não há mais um líder de matilha inconteste, como lidaremos com o dissenso daqui por diante? Será que estamos fadados a descobrir mais uma vez que o homem é o lobo do homem?

Não tenho resposta para nenhuma dessas questões, mas não acredito no aprofundamento das lutas fratricidas. Quero acreditar que, por puro cansaço de esperar por um grande pai capaz de colocar todos os conflitos em pratos limpos, surgirá no horizonte algum sol de convivência respeitosa com a frustração.

Seja como for, aguardo esperançosa a emergência de novas utopias. O cooperativismo, minha utopia pessoal, é apenas uma das formas que encontrei de apostar na tese de que todo caos é criativo. Se ela se mostrar inviável e se as alternativas falharem, nem tudo estará perdido. Ecoando o pensamento de Eduardo Galeano, manifesto amorosamente a crença de que a função crítica de toda utopia é a de nos forçar a caminhar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Maioridade e maturidade

Myrthes Suplicy Vieira (*)

by Geraldo "Passofundo" Fernandes, desenhista gaúcho

by Geraldo “Passofundo” Fernandes, desenhista gaúcho

Maioridade penal: eis aí um daqueles temas cujo debate gera, como dizem os ingleses, mais calor do que propriamente luz. Fácil é arregimentar argumentos contra e a favor de sua redução. Difícil me parece ser encontrar um caminho legal que pareça justo a ambas as partes para lidar com a crescente onda de violência no país.

Durante as recentes manifestações contrárias à redução da maioridade penal pude ver um cartaz onde se lia: “Para que punir se podemos educar?” Boa pergunta! Se estamos aptos a oferecer a nossos menores uma educação de qualidade capaz de sensibilizá-los para sua responsabilidade na promoção do bem estar social, por que não o fazemos? E, caso alguém acredite que isso já está sendo feito, por que não estamos obtendo os resultados desejados?

Penetrando um pouco mais nessa polêmica, já há consenso no país quanto ao que significa educar? A quem pertence essa tarefa? Frequentar uma instituição de ensino é critério suficiente? Há já um número suficiente de escolas públicas de qualidade para acolher todos os que delas precisam? Se a educação não se restringe à escola, que outros passos estão sendo dados para envolver os demais segmentos culturais, sociais e políticos?

Faltam muitas informações não só sobre essas questões mas também e principalmente sobre os projetos de reeducação e reinserção social de menores infratores. Você sabe a que tipo de medidas socioeducativas são expostos esses menores? Quais são mesmo as taxas de reincidência? Como é feito, se isso acontece, o acompanhamento psicossocial dos adolescentes que já atingiram a maioridade legal e que tenham delinquido antes dela?

Prison 5Quero jogar um pouco mais de gasolina nessa fogueira. Não é preciso ser nenhum especialista em comportamento humano para traçar o perfil psicológico padrão de um adolescente. Sensação de imortalidade, rebeldia, desejo de se destacar do grupo de referência (qualquer que seja o meio para atingir esse objetivo), impulso permanente de expandir os próprios limites e aceitação dos riscos.

Pois é, está claro que maioridade é uma coisa e maturidade outra bem distinta. Não é à toa que cientistas comportamentais vêm se esforçando em apontar as diferenças entre inteligência racional (capacidade de discernimento entre o que é certo ou errado) e inteligência emocional (capacidade de controlar impulsos e projetar consequências dos próprios atos). Se você duvida que essa seja uma tarefa relevante, por favor responda às perguntas abaixo.

Com que idade você acha que seu filho (ou filha) pode começar a agredir verbalmente outros membros da família? A partir de qual idade ele ou ela estaria autorizado a pegar o dinheiro que estava sobre a mesa da sala e usar em proveito próprio sem dizer nada a ninguém? A partir de qual faixa etária, ele ou ela estaria liberado para agredir fisicamente irmãos, praticar ‘bullying’ com colegas de escola, torturar o gato ou cachorro da família? Com que idade você diria que ele ou ela pode começar a impor seus desejos e crenças a seus parceiros sexuais?

by Constantin Ciosu, desenhista romeno

by Constantin Ciosu, desenhista romeno

Se você respondeu a essas questões com um número – não importa qual – certamente vai se ver às voltas com um sem número de problemas que o forçarão a rever seu conceito pessoal de paternidade responsável.

Alguém já disse que educar é frustrar. A meu ver, é também a colocação de limites, o estabelecimento de uma linha divisória entre o que a autoridade familiar considera tolerável e os comportamentos julgados inadmissíveis por colocarem em risco a própria integridade ou a de terceiros.

by Edvaldo Rodrigues, desenhista paulista

by Edvaldo Rodrigues, desenhista paulista

À idade cronológica não corresponde forçosamente a mesma idade mental. Da mesma forma, à inteligência mental não corresponde o mesmo patamar de inteligência emocional. Conhecemos todos pessoas que, do dia em que nascem até seu último suspiro, são incapazes de conviver harmoniosamente em sociedade.

Colocar os interesses pessoais à frente do respeito devido a quem atravessa nosso caminho é sintoma claro de imaturidade emocional. Se a ela se agrega um quadro de permissividade social, a solução dos conflitos fica cada vez mais distante. Na adolescência, a inconformidade com a colocação de limites vem quase sempre embalada em desvios de conduta social, já que o mote dessa fase de vida é a autoexperimentação. Porres homéricos, consumo de drogas, rachas de automóvel, brigas na rua, vandalismo, práticas sexuais inconsequentes. Sinta-se à vontade para incluir outros exemplos do desejo quase incontrolável do jovem de se autoafirmar acima e além de qualquer outra forma de controle social.

A pergunta crucial que está sendo feita neste momento é se o jovem com idade inferior à constitucionalmente definida como maioridade legal deve ou não responder pelas consequências de seus atos.

Para mim, há uma diferença gritante entre responsabilizar e punir. Se não recai sobre a minha cabeça a necessidade de reparar ou compensar eventuais transtornos que eu possa ter causado voluntária ou involuntariamente a terceiros, não tenho como avançar em meu processo de amadurecimento psicológico.

Tribunal 5O que precisamos discutir com urgência é de que forma essa reparação pode e deve ser feita. Já está suficientemente claro para todos que não basta trancafiar infratores – tenham a idade que tiverem – jogar fora a chave e fazer de conta que não haverá efeitos colaterais indesejáveis.

Adotar a tática do avestruz e deslocar as atenções para a complexa questão carcerária brasileira é, a meu ver, uma decisão tão ou mais irresponsável do que a própria delinquência juvenil que se pretende combater.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.