Grã-Bretália

Capa da revista

José Horta Manzano


“Podem falar de mim à vontade, desde que seja bem. Falar mal, não admito.”


A historieta que vou lhes contar hoje é bom exemplo dessa afirmação. Na verdade, creio que é próprio do ser humano. Todos a-do-ram ser incensados e de-tes-tam ser zombados.

A conceituada revista britânica The Economist é famosa por suas capas. A cada semana, leitores (e não leitores) se põem curiosos pra tomar conhecimento da nova tirada.

Talvez o distinto leitor se lembre da capa que a revista fez, lá pelos anos eufóricos da Copa 2014, quando o Brasil ainda bombava. Foi publicada uma montagem com o Cristo Redentor do Rio subindo aos céus como se fosse um foguete. Simbolizava o arranque de um Brasil que se preparava para sentar à mesa dos grandes.

Talvez vosmicê se lembre também que, alguns anos depois, constatando que o foguete brasileiro tinha dado chabu, a Economist publicou capa muito parecida, com o mesmo Cristo impulsionado por foguete, só que em queda, em direção ao solo.

Os mesmos que haviam aplaudido a primeira capa se sentiram indignados quando saiu a segunda. É natural. Ninguém gosta de ser caçoado.

Esta semana, a capa da revista apresentou uma Liz Truss (primeira-ministra britânica) vestida como deusa da Roma antiga. Só que, no lugar do escudo, está uma pizza margherita; em vez de lança, há um garfo; e na ponta do garfo, espaguete enrolado. O mais marcante é o título: “Welcome to Britaly”, uma fusão de “Brexit” com “Italy”, que o Estadão teve a luminosa ideia de traduzir: “Bem-vindo à Grã-Bretália”.

A intenção da Economist foi comparar a atual bagunça político-econômica do Reino Unido com a Itália, país onde crises de governo e problemas econômicos são recorrentes.

O fato é que os italianos não acharam nenhuma graça na gracinha. A mídia da península está indignada, em pé de guerra. Não houve um veículo que não manifestasse desagrado, embalado sob forma de editorial ou artigo.

O Corriere della Sera faz longa explanação político-econômica para demonstrar que os atuais percalços britânicos não podem ser comparados às agruras italianas. Trata o Brexit de “catástrofe econômica, cultural e civil”. Lembra que a Itália é o 7° exportador mundial, enquanto a Grã-Bretanha é o 14°. E continua por numerosos parágrafos a demonstrar que a Itália está em posição bem mais confortável e segura que a Inglaterra.

Carta do embaixador

A onda de protesto bateu até na Embaixada da Itália em Londres. O embaixador endereçou carta de reclamação à redação da Economist. Lamenta que a capa tenha se baseado unicamente em estereótipos batidos. Sugere que, de uma próxima vez, a revista não se atenha ao espaguete e à pizza (embora sejam a comida mais popular no mundo), mas que se lembre dos setores aeroespacial, biotécnico, automotivo e farmacêutico.


“Podem falar de mim à vontade, desde que seja bem. Falar mal, não admito.”


 

O ministério inglês e o nosso

José Horta Manzano

Nestes dias de bicentenário da independência, a desfaçatez ostentatória do capitão tem ocupado todo o espaço midiático. É como um Carnaval fora de época: tudo o que não for coberto de paetês e lantejoulas vira nota de rodapé.

Talvez o distinto leitor tenha vagamente tomado conhecimento da troca de primeiros-ministros no Reino Unido, onde Boris Johnson cedeu seu lugar a Liz Truss. Em princípio, não é esperado nenhum terremoto na política do país, visto que o governo continua nas mãos do Partido Conservador.

No entanto, assim que Ms. Truss anunciou seu ministério, ficou flagrante uma mudança de época. Foi-se o tempo em que bastava ser um homem branco para ter certeza de subir com facilidade os degraus do poder, deixando eventuais concorrentes a comer poeira. Pra começo de conversa, a primeira-ministra é uma mulher. Não é a primeira, mas, antes dela, só duas outras haviam ocupado esse cargo: Margaret Thatcher e Theresa May.

Pela primeira vez na história, entre os membros mais importantes do gabinete, nenhum se enquadra no padrão tradicional “male & pale” – de sexo masculino e pele clara. Os sete principais são: Kwasi Kwarteng, Suella Braverman, Thérèse Coffey, James Cleverly, Nadhim Zahawi, Kemi Badenoch et Ranil Jayawardena. Com uma única exceção, todos eles são cidadãos britânicos oriundos de imigração recente. Não têm a pele, o cabelo nem os olhos claros que a gente costuma atribuir aos anglo-saxões.

A composição do gabinete não é fruto de um capricho da nova chefe de governo. Entre os oito que concorreram ao cargo de primeiro-ministro, quatro eram mulheres enquanto os outros quatro eram homens descendentes de imigrantes. Esses cidadãos não se filiaram ao Partido Conservador por acaso; são apoiadores fervorosos do Brexit e de pautas liberais. A composição do novo governo é a prova de que a Grã-Bretanha teve sucesso na integração de imigrantes das antigas colônias. Em apenas meio século, descendentes de povos exóticos conquistaram o status de cidadãos britânicos como os demais.

Esse arco-íris ministerial de peles alvas e escuras, de tipos escandinavos e paquistaneses, de olhos cuja cor varia entre a água-marinha e o negro profundo é único na Europa, quiçá no mundo. Na França, que também recebeu correntes de imigração provenientes das antigas colônias, não se encontra a mesma diversidade no topo do poder. Quando muito, um negro aqui, um árabe acolá, geralmente em cargos de menor importância.

E o Brasil? Num país como o nosso, onde a miscigenação começou há meio milênio e resultou num contingente populacional em que mais da metade dos integrantes são mestiços, como é que ficam as coisas? Pois nossa situação está longe do exemplo da Inglaterra. A diversidade de nossa população não se reflete nas altas esferas. Nos ministérios de Brasília, encontrar uma mulher é coisa rara; um mestiço, então, mais raro ainda. No quesito representatividade dos variados estratos de nossa população, permanecemos fincados nos tempos coloniais.

Na era PT, apesar das barbaridades que cometeram, Lula e Dilma tiveram a sensibilidade de escolher ministros que escapassem do paradigma “homem e branco”. No governo Bolsonaro, demos um passo atrás. O capitão reforçou o sentimento de que, fora do padrão “homem e branco”, só há cidadãos de segunda classe.

É um tremendo erro considerar que só homens brancos estão habilitados a condividir o poder. Nossa diversidade cultural, racial e religiosa é o que é. Veio e está aí pra ficar. Quem a ignora incorre no mesmo tipo de negacionismo que os que consideraram a covid uma gripezinha: serão atropelados pela realidade.

Somos o que somos, e só no dia em que reconhecermos essa realidade teremos alguma chance de ver nosso processo civilizatório desempacar.