Inimigos médicos

Percival Puggina (*)

Quando viu o povo na rua, cobrando atenção à Saúde Pública, Dilma adotou prática tão antiga quanto namorar no portão. Escolheu um inimigo e o apontou à sociedade: os médicos brasileiros. A partir daí, jogou contra eles os raios e trovões que conseguiu recolher em seu repertório.

A saúde pública tem problemas. Falta atendimento, dinheiro, leitos. São longas as filas. Espera-se meses por um exame e anos por uma cirurgia. De quem é a culpa? Segundo a presidente, a culpa é dos médicos. Sua Excelência cuidou de passar à sociedade a impressão de que eles preferem viver nos grandes centros não porque ali estejam os melhores hospitais, laboratórios e equipamentos, mas porque ali estão os melhores restaurantes, clubes e cinemas. Foi para a tevê tecer ironias com o fato de que os primeiros a fazerem opções no “Programa Mais Médicos” preferiram localidades litorâneas. A compreensão dessa mensagem pelos sem discernimento (estamos falando de dezenas de milhões) fica assim: os doutores gostam, mesmo, é de praia.

Através dessas paquidérmicas sutilezas, o governo tenta convencer a sociedade de que os médicos não vão para as pequenas comunidades porque se lixam para as carências com que ele, governo, se preocupa. Opa! Preocupa-se agora, preocupa-se depois das vaias, preocupa-se depois das passeatas. E esquece que, pelos mesmos motivos, milhões de outros profissionais também preferem trabalhar em centros urbanos mais dinâmicos. Identificado o inimigo, a presidente partiu para o ataque. Criou um 2º ciclo de formação médica, obrigatório, a serviço do SUS, com duração de dois anos, a ser prestado onde houver necessidade. Fez com que os médicos perdessem a exclusividade de diversas atribuições relativas a diagnósticos e prescrição de tratamentos. Jogou na lixeira a insistente e lúcida recomendação no sentido de que seja criada na área médica uma carreira de Estado, semelhante à que existe para as carreiras jurídicas. Explico isso melhor: espontaneamente, nenhum juiz ou promotor vai solicitar lotação em Paranguatiba do Morro Alto. No entanto, como etapa de uma carreira atraente e segundo regras bem definidas, sim. É desse modo que se resolvem as coisas numa sociedade de homens livres.

Nada revela melhor a vocação totalitária do partido que nos governa do que este episódio. É uma vocação que dispensa palavras, que atropela leis e se expressa nas grandes afeições. Cubanas, por exemplo. A vinda dos médicos arrematados em Castro & Castro Cia. Ltda. permite compor um catálogo de transgressões aos princípios da liberdade individual, da dignidade da pessoa humana, da justiça, da equidade, da proporcionalidade, do valor do trabalho. Repugna toda consciência bem formada a ideia de que um país possa alugar seus cidadãos a outro, enviá-los aos magotes como cachos de banana, beneficiar-se financeiramente dessa operação em proporções escandalosas e ainda fazer reféns as respectivas famílias por garantia da plena execução do mandado. E há quem afirme que toda oposição a uma monstruosidade dessas é “preconceito ideológico”! Pois eu digo diferente: acolher como louvável semelhante anomalia política é coisa que só se explica por desvio do juízo moral.

Dilma e os seus gostariam de dispor dos brasileiros como coisas suas, assim como os Castro dispõem dos cubanos. Sendo impossível, buscam-nos lá, do mesmo modo como, antigamente, eram trazidos escravos das feitorias portuguesas no litoral africano.

(*) Arquiteto, empresário e escritor

O 13 de maio às avessas

José Horta Manzano

Sob forte pressão das potências da época, o Brasil foi praticamente forçado a abolir a escravidão. O século das luzes, os anos 1700, já havia despertado no mundo europeu uma nova reflexão sobre o assunto.

O fato de um indivíduo ser automaticamente condenado a uma vida de escravidão unicamente por pertencer a determinada raça começou a incomodar. O que antes parecia fazer parte da ordem natural das coisas passou a ser questionado.

A Revolução Francesa acelerou a reflexão. «Se, depois de lutar tanto, conseguimos nos desvencilhar de nossos senhores, não faz sentido mantermos outros estratos de população sob regime forçado de trabalho» ― foi o que pensaram as mentes mais iluminadas.

Um afrouxamento gradual do sistema escravagista teve lugar a partir do início do século XIX. A Inglaterra em 1838 e a França em 1848 extinguiram definitivamente a estrutura escravocrata. Foi abolida a captura de africanos, assim como seu uso como escravos. Terminada a Guerra de Secessão, a escravidão foi extinta também nos Estados Unidos em 1865.

Estetoscópio

Estetoscópio

O Brasil demorou um pouquinho mais. No entanto, a abolição da importação de novos escravos, decretada em 1850 ― associada à Lei do Ventre Livre, em 1871 e à Lei do Sexagenário, em 1885 ― já haviam decretado de facto o fim do sistema no País. A lei de 13 de maio de 1888 apenas apressou e oficializou uma situação à qual o Brasil já se encaminhava inexoravelmente.

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Mas o homem é incorrigível. Você expulsa o fantasma pela porta, ele volta pela janela. Volta e meia, descobre-se que algum poderoso anda explorando um grupo de gente em situação de fragilidade, num esquema de semiescravidão. Situações assim são frequentemente flagradas em regiões recuadas do território. Mas também em grandes cidades, principalmente em São Paulo, desbaratam-se frequentemente oficinas clandestinas que exploram o trabalho de bolivianos, peruanos, chineses, em situação análoga à escravatura.

A cada vez, a imprensa denuncia, a tevê faz eco, liberam-se os cativos. Quanto aos culpados, bem, sacumé, nossa Justiça é atulhada de chicanas, para usar palavra da moda. O processo, quando há, arrasta-se por tanto tempo que o crime periga prescrever. Mas essa é uma outra história, não é o assunto do dia.Interligne 18f

O assunto do dia é uma notícia assustadora em cuja veracidade eu não acreditaria, não tivesse ela sido publicada em vários jornais: o Brasil reintroduz a escravidão.

Já não se procede mais como 150 anos atrás. Afinal, o mundo progrediu. Já não se veem mais empreendedores independentes trabalhando em sistema vertical, tipo serviço completo, incluindo a colheita da mercadoria humana na origem, o transporte até nossos portos e a comercialização de indivíduos em leilão público.

Hoje nos limitamos a ser cúmplices de um moderno trato de escravos, versão 2.0, coisa fina. Nossas mãos ficam limpas, o trabalho sujo é deixado a cargo de outros. Fechamos um olho para a realidade e fingimos, assim, que ela não existe.

O mais inquietante nessa moderna variante do escravagismo é a ação governamental direta. No século XIX, o governo se limitava a dar seu beneplácito, enquanto o trabalho grosso era executado por empresários pouco humanitários, que se encarregavam de trazer o negros e de comercializá-los. As autoridades se contentavam com os frutos da operação, que vinham sob forma de impostos e de votos dos fazendeiros satisfeitos.

Na escravidão atual, o governo federal é conceptor, executante e beneficiário da operação. Os frutos continuam a ser colhidos sob forma de impostos e de votos, exatamente como no passado. Uma jogada de mestre!

Não sabem do que estou falando? Cáspite! Da importação de médicos cubanos. Não sou médico, nem beneficiário da bolsa família. Tampouco vivo em São Nicodemo do Brejo. Não recorro ao SUS. Portanto, prefiro não entrar em considerações gerais sobre a conveniência ou não de se importarem médicos. Eles, que são brancos, que se entendam. Prefiro deixar essa discussão aos interessados diretos.

Mas não posso deixar passar em branco uma evidência: o povo brasileiro ― através de seus representantes democraticamente eleitos ― está patrocinando uma moderna estrutura de semiescravidão. Somos cúmplices da abominável chantagem que a gerontocracia de Havana está impondo aos jovens médicos cubanos.

Médico

Médico

Com o desaparecimento da antiga União Soviética, Cuba perdeu seu padrinho. Desde então, a miséria da população, a falta de perspectivas, a desesperança revelam a falência do regime. A ilha vive de expedientes. Os turistas trazem alguma migalha, os cubanos do exterior ajudam com mais um pouco, o regime bolivariano garante o fornecimento de petróleo. E assim, os infelizes vão levando adiante. Fazem o que podem.

Exportar revolução, coisa que se fazia muito lá pelos anos 70, saiu de moda. Para aliviar o sufoco financeiro, o regime dos Castros imaginou um estratagema: exportar profissionais da área médica. Como se pode facilmente imaginar, médicos e enfermeiros são bem-vindos em qualquer lugar do mundo.

Faltava encontrar um meio de garantir que os modernos escravos entregassem o soldo aos mandachuvas de Havana, exatamente como a prostituta faz com seu cafetão. Não foi difícil. O acordo ― aceito pelo Brasil ― estipula que os salários não serão pagos diretamente ao profissional, mas ao governo cubano. Que, por sua vez, guardará o que julgar conveniente e retrocederá ao médico a quantia que bem entender.

Para garantir que não haverá fugas nem deserções, os infelizes profissionais são proibidos de trazer consigo a família. Mulher e filhos, tomados como reféns, permanecem na ilha. Para fechar o cerco, o Brasil se comprometeu a não acolher pedido de asilo de nenhum médico cubano. Parece intriga da oposição, futrica de vizinho maldoso, piada de salão, mas é a pura verdade. A confissão saiu, com ar displicente, da boca do próprio advogado-geral da União.

Socialismo o muerte

Socialismo o muerte!

Condenados por assassinato, gente com sangue nas mãos, é acolhida de braços abertos. Aconteceu, não faz muito tempo, com um foragido da justiça italiana. Quanto a médicos que só perigam ter nas mãos o sangue de brasileiros cuja vida estiverem tentando salvar, esses não terão direito a nenhum asilo. Que venham, socorram nossos deserdados, e em seguida voltem rapidinho para o inferno de onde saíram. Passar bem!

E pensar que a razão de ser da revolução do socialismo o muerte foi exatamente eliminar a exploração do homem pelo homem!

Pior ainda é pensar que as autoridades de nosso País se acumpliciam, em nosso nome, com essa maquinação. Dá muita vergonha e muita raiva.

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Observação
Um recorte deste artigo de Flávia Marreiro, da Folha de São Paulo, deveria ser entregue a cada médico cubano que pisasse solo brasileiro.

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A frase do dia – 09

Tiroteio
“Vamos ter de criar a bolsa-idioma, para o paciente do SUS aprender a se comunicar com os médicos em espanhol, inglês…”

Fernando Capez, deputado estadual, sobre proposta do governo de trazer médicos estrangeiros para áreas sem oferta de profissionais.

Recolhido por Vera Magalhães, in Folha online, 23 junho 2013

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