A dinastia Bongo

Foto de 1973 mostra Omar Bongo e esposa em visita à rainha da Holanda e ao príncipe consorte.

José Horta Manzano

Em 2004, no segundo ano de seu primeiro mandato, Lula da Silva viajou muito. Estava a-do-ran-do andar de avião presidencial, ser recebido com honras de chefe de Estado, visitar palácios e comer do bom e do melhor. Cá entre nós: quem não adoraria?

Deslumbrado, falava pelos cotovelos, dava suas impressões a torto e a direito e revelava seus desejos mais recônditos ao primeiro jornalista que aparecesse. Um belo dia, indagado sobre sua viagem ao Gabão (país da África equatorial, vizinho da Guiné, de Camarões e do Congo-Kinshasa) soltou a bravata: “Fui ao Gabão aprender como se fica 37 anos no poder”. (*)

As palavras sempre têm um fundo de verdade (“onde tem fumaça, tem fogo”). Por trás da fanfarronada, devia estar um desejo oculto de repetir, no Brasil, a façanha de Omar Bongo, o colega gabonês. Para sua própria sorte (e nossa também), Luiz Inácio não aprendeu a lição do ditador.

Recentemente tivemos na Presidência um indivíduo que, envolto na névoa das mentiras criadas por ele mesmo, tentou subverter a ordem e enveredar pelo caminho pedregoso e incerto da autocracia. Não conseguiu, levou uma rasteira e quebrou a cara. Afinal, o Brasil não precisa de autocrata e, ainda que precisasse, o escolhido jamais seria esse estropício falastrão.

Mas voltemos ao Gabão. O ditador que Lula visitou era o primeiro da dinastia. Chamava-se Omar Bongo. Tinha assumido o poder em 1967, seu caminho cruzou o de Lula em 2004, e faleceu em 2009, depois de 42 anos no poder. Sempre houve eleições para renovar seu mandato. Os resultados eram soviéticos: Bongo venceu sempre com pelo menos 90% dos votos, coisa do outro mundo.

Em 2009, morto e enterrado o patriarca, um dos filhos se apresentou como candidato a suceder ao pai. Herdeiro era o que não faltava: Omar Bongo tinha 52 filhos reconhecidos oficialmente! Com eleições fraudulentas e um sistema viciado, o filho Ali Bongo ganhou com folga. E o sistema continuou tranquilo nos mesmos moldes de antes. Uma dinastia estava instaurada.

Só que tudo tem um fim. Quarta-feira passada, os programas de rádio e televisão do Gabão foram subitamente interrompidos. Entrou no ar o anúncio solene feito por uma junta militar: “Ali Bongo está deposto. O agora ex-presidente está em prisão domiciliar, recebendo bons tratos, mas definitivamente afastado do poder”. A presidência do pai somada à do filho dá um total de 56 anos – mais que o longo reinado de D. Pedro II.

O Gabão é um dos países mais ricos da África em PIB por habitante. Extrai petróleo, gás natural, manganês, ferro, urânio. Os combustíveis fósseis representam oitenta porcento das exportações. Um nível tão elevado de PIB deveria indicar um país de população rica, bem de vida e próspera. No entanto, não é exatamente assim. Os habitantes são muito pobres porque, durante décadas, essa dinheirama vem sendo desviada pela corrupção.

As elites do país, irrigadas por esse dinheiro fácil, apoiaram e sustentaram a dinastia dos Bongo. Desconheço o estopim da revolta militar que depôs o presidente, acredito que tenha havido dissensões no interior da corporação.

Os membros da extensa família do ditador podem até estar sendo bem tratados, mas não vão escapar à justiça francesa. De fato, a riqueza da família, só contando o patrimônio em território francês, é calculada em 85 milhões de euros (420 milhões de reais). São 33 propriedades de luxo na região parisiense mais 11 na Côte d’Azur.

O MP francês acredita que esse patrimônio tenha sido adquirido fraudulentamente, fruto de desvio de dinheiro público e de corrupção das sociedades petroleiras. Nove dos 52 filhos do patriarca da dinastia já são réus na justiça francesa por esses crimes. É mais que provável que os imóveis serão confiscados e devolvidos ao Gabão no dia em que o país virar democracia.

O mundo está ficando pequeno e, de certa forma, mais transparente. Se, anos atrás, era viável esconder algum objeto ou algum malfeito, hoje vai ficando mais difícil. Os métodos modernos de vigiar a população têm efeito dissuasivo.

Se não dá pra esconder nem uns dólares na cueca, como é que alguém haveria de esconder dezenas de apartamentos em Paris ou…  joias de  ouro cravejadas de diamantes?

(*) Em 2016 escrevi um artigo sobre o Gabão. Clique aqui.

A lição do Gabão

José Horta Manzano

Anos atrás, no apogeu da popularidade, nosso guia se sentia acima do bem e do mal. Falava pelos cotovelos, dizia bobagens cabeludas e a maioria, anestesiada, achava graça e aplaudia. Convém lembrar que ele continua recitando bobagens, mas a plateia ‒ para azar dele ‒ despertou da letargia. O prazo de validade venceu e a fala do antigo guia perdeu o encanto: vai direto para o cesto de papel.

Em agosto de 2004, quando de uma viagem ao Gabão ‒ país da África equatorial, pequeno mas rico em petróleo e em minerais ‒ foi recebido com pompa e circunstância pelo então “presidente” Omar Bongo. Àquela altura, já fazia 37 anos que o figurão estava no topo do poder. Firme e forte, ainda ficaria cinco anos, até exalar o último suspiro, perfazendo um total de 42 anos de mando.

Chamada do Estadão, 17 ago 2004 Clique para ampliar

Chamada do Estadão, 17 ago 2004
Clique para ampliar

Encarnação do culto extremo à personalidade, prática comum em países mais atrasados, o ditador chegou a ser homenageado, em vida, com a mudança do nome de sua cidade de nascimento. Já em 1969, dois anos depois de Bongo tomar o poder, a pequena Ambombo natal passou a chamar-se Bongoville. Traduzindo para o tupiniquim, é como se Caetés tivesse sido rebatizada Lulópolis ou Lulândia. Dá pra sentir o ambiente?

Com a morte de Omar Bongo, o caminho da sucessão se abriu. E quem foi o ungido? Pois foi Ali Bongo, primogênito do velho guerreiro. Coincidência? Não parece. A máquina da ditadura hereditária, bem azeitada pelo patriarca durante quatro décadas, não tinha como falhar. À moda da Coreia do Norte, da China, de Cuba e de outros paraísos democráticos, eleições são só pra inglês ver. O poder passa de pai pra filho enquanto parlamentares são eleitos apenas para referendar decisões já tomadas pelos reais donos do país.

Após sete anos, chegou a hora de Ali Bongo convocar eleições presidenciais. Foi agora, mês passado. Os resultados são interessantíssimos. Monsieur Bongo saiu vencedor com uma apertada diferença de 6 mil votos, menos de um porcento do eleitorado.

Lula & Omar Bongo em 2004. Bongo foi "presidente" do Gabão durante 41 anos e meio, até sua morte, quando foi substituído pelo filho.

Lula & Omar Bongo em 2004.
Bongo foi “presidente” do Gabão durante 42 anos, até sua morte, quando foi substituído pelo filho.

As eleições, como em quase todo o mundo, são facultativas: vota quem quiser. Computadas as nove províncias do país, a participação média não chegou a 60% do eleitorado. O fato mais curioso vem agora: na província do Alto Ogouê, região natal do clã Bongo, a participação foi de 99,93% dos eleitores. Monsieur Bongo venceu ali com 95,46% dos votos, resultado staliniano.

O segundo colocado interpôs recurso junto à corte constitucional do país. Depois de semanas de suspense, o resultado final acaba de sair: a vitória de Monsieur Bongo não só fica confirmada, como a diferença aumentou de 6 mil para 12 mil votos. Um detalhe: a presidente da corte constitucional é a mãe do vencedor das eleições. Uma coincidência, sem dúvida.

Quando se fica sabendo de coisas assim, a gente sente que vive em país de Primeiro Mundo. Ainda bem que Monsieur Bongo não ensinou ao Lula como fazer para ficar eternamente no poder. Quem sabe tenha até ensinado, mas o aluno, para felicidade geral da nação, não conseguiu reter a lição.

Quem garante?

José Horta Manzano

Impeachment? Votação fatiada? Tomada de posse? Viagem à China? Entrar com recurso total? Recurso parcial? Recurso fatiado? Ministro do STF impedido? Conchavo? Conspiração das «direitas»? Conspiração das «esquerdas»?

Para nós, trancafiados contra nossa vontade neste hospício, está ficando cansativo. Já a mídia internacional está-se convencendo de que a política brasileira ultrapassa o entendimento de não iniciados. Notícias sobre a destituição da presidente estão sendo rebaixadas a nota de rodapé. Estrangeiros de cultura mediana não têm formação suficiente para acompanhar nossas reviravoltas nem nossos vaivéns.

Fatiado à moda da casa

Fatiado à moda da casa

Estes dias, na falta de catástrofes, as manchetes têm destacado assuntos internos de cada país. Na parte internacional, os editores estão evitando falar do Brasil. As declarações esquizofrênicas de Mister Trump e as arruaças que se seguiram à proclamação do resultado das eleições presidenciais no Gabão dominam o noticiário. Deu-se também destaque à impressionante manifestação de centenas de milhares de venezuelanos antibolivarianos.

Quarenta anos atrás, tive um colega de trabalho muito espirituoso. Com voz de trovão, leve sotaque estrangeiro, alto, corpulento e desinibido, o homem não passava despercebido. Estávamos em pleno período militar, época em que o Exército ocupava o topo da pirâmide do poder. Pais protegiam filhos. Professores velavam por alunos. Patrões garantiam empregados. E assim por diante, na complexa hierarquia social, até que se chegava ao cume. Lá em cima, «protegendo» todos, estava o poder militar. Irrespeitoso, meu amigo costumava perguntar ‒ com o vozeirão característico: “E quem garante o Exército?”

Lula & Omar Bongo em 2004. Bongo foi "presidente" do Gabão durante 41 anos e meio, até sua morte, quando foi substituído pelo filho.

Lula & Omar Bongo em 2004.
Bongo foi “presidente” do Gabão durante 41 anos e meio, até o dia em que morreu. Foi então substituído pelo filho, que está lá até hoje.

Lembrei desse episódio hoje. Os brasileiros, cuja maioria não suporta mais os descaminhos do andar de cima, forçaram seus representantes a dar um jeito. A solução mais evidente era a destituição da presidente, o que afastaria do poder os personagens mais nefastos. Deputados votaram e garantiram a vontade popular. O Senado votou e garantiu a decisão da Câmara.

Muitos se mostraram desagradados com o «rito». Inconformados, estão apelando ao Supremo Tribunal Federal. Até o momento em que escrevo, mais de uma dezena de representações já foi apresentada ao tribunal maior. Por bem ou por mal, querendo ou não, o STF vai ter de se pronunciar.

Se, quarenta anos atrás, a dúvida era: «Quem garante o Exército?», temos hoje o direito de perguntar: «Quem garante o STF?»