Com açúcar, com afeto e com fixações

José Horta Manzano

Antes de começar, faço questão de deixar claro que vejo no artista Francisco Buarque de Hollanda um dos grandes da música brasileira. Com o devido respeito ao gênero de cada um e à época em que exerceram sua arte, considero que Chico ocupa lugar de honra no mesmo patamar em que estão Francisco Mignone, Heitor Villa-Lobos, Oswaldo Gagliano (Vadico), Ary Barroso, Baden Powell, Tom Jobim e mais três ou quatro. Não é coisa pouca.

Mas ninguém é perfeito. Artistas, principalmente, devem ser julgados por suas qualidades, não por seus defeitos. Se alguns dos que citei bebiam demais, eram mulherengos ou chegaram a tomar ideias musicais “emprestadas” de terceiros, que importância tem isso em sua arte? Os eflúvios do álcool, as estrepolias de alcova ou até a inspiração colhida em obra alheia passam. O que fica, ao final, é a arte de cada um. Os personagens que citei, cada um em seu estilo, ainda estarão na crista da onda daqui a séculos.

Num documentário lançado recentemente, Chico Buarque fez um pronunciamento pra lá de polêmico, quase uma provocação. Ao referir-se ao extraordinário “Com açúcar, com afeto”, uma das maravilhas da MPB, samba composto por ele há 55 anos, disse:

“Na verdade, a primeira música que fiz na primeira pessoa foi pra Nara [Leão]. Ela me pediu uma música ‘daquelas’, ela me encomendou essa música. Ela falou ‘Eu quero agora uma música de mulher sofredora’. E deu exemplos de canções do Assis Valente, Ary Barroso, aqueles sambas da antiga, onde os maridos saíam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo “Amélia”, aquela coisa. Ela encomendou, e eu fiz (…) É justo, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com açúcar e com afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente.”

Pra quem teve preguiça de ler na íntegra a citação, fica aqui o essencial da fala do artista: “É justo, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas”.

Essa declaração comporta um trecho assaz constrangedor, em que Chico, um tanto ingenuamente, empresta intenções a Nara Leão, falecida há mais de três décadas. Diz que, se viva fosse, ela certamente não cantaria “Com açúcar, com afeto”. Acho sempre arriscado pôr palavras na boca dos mortos ou intenções na cabeça deles. No limite, ele poderia ter dito que achava, que imaginava, que acreditava. Mas ele disse que “certamente” ela não cantaria. Uma temeridade. Ninguém pode fazer afirmação desse quilate, passados mais de trinta anos do desaparecimento da pessoa.

Por minha parte, acho que Nara não abandonaria um dos tesouros do cancioneiro nacional que, examinado com lupa, não reforça preconceito nenhum, limitando-se a descrever com sobriedade o dia a dia de um casal que viveu faz meio século, uma vida como milhões de outras. Com alguma insatisfação mas também com ternura. E sem violência. Mas no fundo, ninguém – nem Chico, nem eu – pode ter certeza sobre a decisão que Nara tomaria.

Mas o que mais me impactou foi outra frase. Foi a que pus em negrito. Chico diz, com todas as letras, que “as feministas têm razão” e que vai “sempre dar razão a elas”. Ele não se restringe a este caso. Ele diz sempre. Tirando ditadores e líderes autoproclamados e autoincensados, que costumam ter um parafuso a menos e, por isso, se acham infalíveis, ninguém na face da Terra tem sempre razão. Ninguém.

Devo confessar que fiquei um tanto chocado com a fala do imenso artista. A forma como ele lança essa afirmação é tão natural, que a gente se dá conta de que ele acredita no que está dizendo. Acha realmente que as feministas têm sempre razão.

Apesar do abalo, para mim, Chico continua exatamente no mesmo pedestal em que sempre o alcei. Continua a fazer companhia a Ary, a Mignone, ao Tom e aos demais. Sua frase sobre as feministas até que serviu pra jogar alguma luz sobre seu posicionamento político destas últimas décadas.

Incomodado e perseguido durante a ditadura dos militares, é compreensível que tenha guardado ressentimento. Se apoiou o Lula e o petismo, é porque via nesse movimento a antítese ao regime que lhe havia atazanado a existência. Ele não foi o único a escolher a mesma via pelos mesmos exatos motivos.

Quando foram desvelados o mensalão e, sobretudo, o petrolão, grande maioria dos que haviam visto no lulopetismo, um dia, o polo oposto e o antídoto à ditadura desembarcaram da carruagem, que idealismo tem limite. Chico continuou no comboio.

O imenso poeta e compositor, aliás, não se limitou a apoiar o personagem do ex-metalúrgico. Foi fervente defensor de sua sucessora, a inominável doutora, aquela que, em matéria de prejuízos causados ao povo brasileiro, só perde para o atual ocupante do Planalto.

Evidentemente, posso estar enganado, já que ninguém tem sempre razão. Mas me ficou a forte impressão de que Chico Buarque é daquele tipo de pessoa que, quando abraça uma pessoa ou uma causa, agarra-se a ela com unhas e dentes. Sua dedicação é total; sua fidelidade, canina; seu apego, acrítico. Ele parece incapaz de reconhecer que as vias do coração não devem ser incondicionais. Mais que isso, parece incapaz de admitir que pessoas podem até, às vezes, não ter razão.

Constrangimento

Myrthes Suplicy Vieira (*)

As definições de dicionário costumam ser problemáticas para quem está em busca de orientação única, dada a necessidade de considerar significados atrelados especificamente a um determinado contexto. Manga, por exemplo, pode ser uma fruta, parte do vestuário que recobre o braço, tubo usado para envolver condutores elétricos, peça tubular que serve para revestir ou proteger outra peça, parte do eixo de um veículo ou filtro afunilado para líquidos.

E, vejam vocês, toda essa multiplicidade de entendimentos acontece em torno de uma palavra comezinha, trivial, usada para se referir apenas e tão somente a um objeto. O que dizer então das infinitas possibilidades de confusão geradas por palavras que fazem referência a comportamentos, atitudes, valores individuais, princípios sociais, sentimentos ou emoções? Posso apostar que cada um dos que me leem tem sua própria coleção de estórias de situações embaraçosas causadas por alguma impropriedade linguística.

Estrangeiros podem cometer gafes imperdoáveis em função de domínio pobre das nuances semânticas de outra língua. Tradutores se debatem todos os dias com a escolha da palavra certa para transmitir fielmente a mensagem original. Humoristas valem-se muitas vezes das confusões no uso de cada vocábulo para divertir plateias e ganhar a vida. Psicólogos e psiquiatras esfalfam-se no cotidiano da clínica para trazer à luz os significados emocionais ocultos na escolha desta ou daquela palavra.

Tudo isso já era sabido. Por coincidência, os meios de comunicação acabam de nos introduzir a um outro contexto em que uma mesma palavra – constrangimento ‒ ganha conotações próprias, polêmicas e praticamente opostas: a área jurídica. Vários jornais trazem estampadas na manchete duas notícias que abordam as agruras de magistrados brasileiros para lidar com esse conceito. A primeira diz respeito à indignação generalizada, tanto de especialistas de direito quanto de pessoas comuns e, em especial, das mulheres ante a sentença de um juiz que considerou não ter havido constrangimento algum no fato de um homem ter ejaculado no pescoço de uma mulher, no interior de um ônibus que transitava em plena luz do dia pela principal avenida de São Paulo.

A segunda faz referência ao prognóstico de ministros do STF que devem julgar a suspeição de um de seus membros para julgar a libertação de um réu com quem tem relações óbvias de parentesco e compadrio. “A regra é evitar o constrangimento”, afirma a reportagem, especulando que a denúncia não deve prosperar na mais alta corte do país. Cabe perguntar: constrangimento de quem? De seus pares, que prefeririam não se posicionar formalmente contra ou a favor de suas decisões estapafúrdias ou de sua postura de confronto com colegas da magistratura e do ministério público? Ou será o constrangimento de afrontar a opinião pública que já dá mostras de cansaço com os seguidos estupros que os dirigentes de nossas três esferas de poder perpetram contra a consciência cívica e ética dos cidadãos?

Querendo entender um pouco melhor o alcance psicológico do termo constrangimento nas duas situações, fui aos dicionários. A primeira surpresa aconteceu quando me dei conta da dessintonia de significados que ocorre se o verbo se apresenta na forma transitiva direta, indireta ou pronominal (que, no meu tempo, se chamava reflexiva). Preparei até uma lista para destacar as implicações legais e psíquicas de cada vertente de significado:

transitivo direto: apertar, dificultando os movimentos, comprimir; tolher a liberdade, dominar, subjugar, sujeitar; ser inconveniente

transitivo indireto: obrigar alguém a algo pelo uso da força; forçar, coagir, compelir

pronominal: ficar embaraçado, envergonhar-se, vexar-se; sentir-se incomodado; ser vítima de inconveniências ou aborrecimentos. Já quanto ao substantivo constrangimento, os dicionários apontam ainda as seguintes conotações: “força (física, moral ou psicológica) exercida sobre alguém para obrigá-lo a agir contrariamente à sua vontade; situação moralmente desconfortável; timidez diante de outras pessoas, acanhamento, encabulamento, vergonha.”

A sutil diferença implícita? A intenção, os sentimentos e a imagem pública de quem constrange e de quem é constrangido. Impossível deixar de notar que em ambos os casos a pessoa a causar embaraço era um homem com uma vasta folha corrida de transgressões (à lei, à ética ou à moralidade pública) e a pessoa vitimada era uma mulher – além da ministra-chefe do STF que deve decidir se pauta o julgamento em plenário ou arquiva a denúncia, permito-me usar de licença poética para incluir a opinião pública nessa categoria.

Não sou feminista e não pretendo insinuar que, fossem agressor e vítima ambos do sexo masculino, as coisas seriam diferentes. Entretanto, admito que me causou profunda perplexidade o final da sentença do juiz do primeiro caso. Para os que não tomaram conhecimento dela, aqui está: “Entendo que não houve constrangimento, violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada [grifo meu] em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”.

Em outras palavras, para esse magistrado, assim como, infelizmente, para muitos outros homens, a sacralidade do corpo feminino e a defesa da dignidade da mulher continuam centradas no conceito de não-violação de seu orifício vaginal. Considerando que o agressor se aliviou “apenas” no pescoço da vítima, à luz do sol e em via pública, deve ter parecido sensato ao digníssimo concluir pela não-violência do ato e enquadrá-lo como simples contravenção penal, de menor potencial ofensivo.

O segundo caso deixa transparecer outro conceito francamente medieval e de efeito igualmente deletério para a preservação da tese de direitos iguais para todos: o de que juízes, por natureza, direito divino ou prerrogativa de cargo, estão além e acima das paixões humanas.

Atenção, céticos de plantão do século 21: aprendam de vez mais uma preciosa lição ministrada por nosso Judiciário: suspeita será sempre a motivação de arguir a suspeição de um varão ou de um magistrado só porque eles chamam a si a prerrogativa de impor suas interpretações da realidade, suas visões de mundo e seus desejos a toda uma coletividade. Atenção maior ainda, defensores dos direitos humanos: a violência física será ad æternum tratada por nossos legisladores e juízes como menos grave do que o constrangimento moral e a tortura psicológica.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Quando o assunto é dinheiro…

José Horta Manzano

23 jan° 2017
Circundado por sete homens engravatados, Donald Trump assina decreto limitando o financiamento de ongs que defendem o aborto. A imagem é simbólica: um conclave exclusivamente masculino retratado no exato momento em que, de certa maneira, cerceava a liberdade feminina de dispor do próprio corpo. A foto deu a volta ao mundo.

2017-0215-01-tsr3 fev° 2017
Indignado com a atitude do presidente americano, o governo sueco reagiu. Divulgou uma foto de uma de suas ministras cercada de equipe exclusivamente feminina. O retrato foi tirado por ocasião de assinatura de acordo sobre mudanças climáticas. Em sua página web, o governo sueco se declara feminista ‒ com muito orgulho.

2017-0215-02-tsr11 fev° 2017
Em visita a Teerã (Irã), a titular do Ministério do Comércio sueco fez-se acompanhar por um grupo de assessoras. Todas eram mulheres. Mas uma imagem vale mais que mil palavras: no momento de saudar o presidente do país, a ministra desfilou com a cabeça coberta pelo véu islâmico. Todas as integrantes do comitê traziam o adereço.

2017-0215-03-tsrO instantâneo causou estupor pelas bandas de Estocolmo. Como é possível que justamente um governo que se autodefine como «feminista» se dobre aos códigos vestimentários iranianos? A explicação é simples e pouco elegante: quando o assunto é dinheiro, ideologia não vigora.

Aliás, essa é uma lição que os brasileiros estão carecas de saber. Na prática, a teoria é outra.

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As mandachuvas suecas entraram em saia justa por se terem «afinado» na hora H, quando, em tempos normais, costumam se gabar de ativismo feminista. Pecaram pela soberba.

Fora isso, não vejo escândalo no fato de mostrar respeito a costumes locais quando se é forasteiro de visita.

2017-0215-04-tsrQuando são recebidas pelo papa, todas as mulheres se apresentam com véu ou chapéu. E ninguém se escandaliza. Vasto mundo.