Dissidência

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Meu reino de escriba por uma dissidência não gratuita!

Não peço explicitamente por um cavalo, mas tomo o cuidado de informar de antemão que a dissidência, um jeito diferente de pensar, argumentado com clareza e destemor, funciona para mim exatamente como um cavalo. Monto nela e volto à arena com o coração pulsando ainda mais forte, cheio de novos brios. Cavalgo a discordância em pleno gozo, sentindo meus músculos mentais se retesando e os ventos da paixão intelectual batendo na minha pele, me estimulando a seguir na luta.

Idade Media 3Nenhum governo se sustenta sem oposição. O regime do meu cérebro não é diferente. Precisa desesperadamente de um antagonista que o faça explorar contradições, limites, dúvidas e certezas. Que o force a pulsar, alternando momentos de expansão e de retraimento. Que encoste no seu peito a lâmina fria da espada de um outro intelecto.

Admito que hoje em dia não é nada fácil ser oposição. O contraditório é agora quase que um insulto, um tapa na cara de quem ousa se posicionar. Vivemos tempos de intolerância, de esgrima mental e verbal. Esquecemos que as palavras são meros instrumentos, cheios de som e fúria, mas que não significam nada em si mesmas. Temidas hoje como faca na mão de crianças, não mais na de cirurgiões.

É pena. Precisamos nos exercitar sempre. Pensar é desobedecer a Deus, disse Fernando Pessoa através da pluma de Álvaro de Campos. Acredito nisso. Pensar, para mim, é denunciar a onipotência do outro, ser iconoclasta, recusar-se a idolatrar o carneiro de ouro da superioridade moral ou intelectual. Contraditar é uma forma benfazeja de emparelhar ângulos de visão, redesenhar fronteiras, encontrar uma perspectiva própria.

Parlamento UKQuando navego pelas redes sociais, não consigo ocultar de mim mesma o desconforto com aquele oceano de platitudes e de eterna reafirmação mútua. Pode soar presunçoso, mas não preciso de afagos a meu Narciso. Claro que sempre dá aquele calorzinho gostoso no peito descobrir que se tem almas gêmeas no mundo, mas sei que o demônio da vaidade costuma atacar por meio delas.

Preciso de alguém que dialogue comigo e que, aceitando o intercâmbio corajoso de opiniões, me devolva a sensação inebriante de estar viva, lúcida. A adesão irrefletida, sem contestação, a meus pontos de vista só faz dissolver aos poucos a atração que experimentei no início. Me emburrece, me empobrece emocionalmente. Tem um efeito tão deletério em meu psiquismo quanto a discordância pela mera discordância.

O confronto leal, por outro lado, tem o condão de me devolver a meu tamanho natural. Sinto-o como uma demonstração de respeito, uma forma de reconhecer a legitimidade de meus sentimentos e de minha maneira de pensar a vida. Reafirmo como um mantra para tentar salvar a mim mesma: a verdade liberta, a integridade seduz.

Idade Media 2Saibam todos os que me lerem que, para mim, os laços afetivos pressupõem a existência de duas pessoas inteiras e separadas. Se uma aceita se dissolver como ser pensante na outra em nome da preservação da relação, o jogo amoroso desaparece, vira tédio. E, lamentavelmente, nem todo mundo se dá conta hoje em dia que o melhor antídoto para realimentar o fogo do amor é a dissensão ocasional.

Duvida? Cantarole comigo:

“O amor da gente é como um grão,
Uma semente de ilusão,
Tem que morrer para germinar…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Voz discordante

José Horta Manzano

Domingo, 16 ago 2015, os passos de centenas de milhares de cidadãos ecoaram em mais de duzentas de cidades – até no exterior.

Os principais jornais brasileiros acompanharam, minuto a minuto, a manifestação de cidadãos. Ponto importante: o encontro tinha sido convocado, não organizado. Nenhum ônibus foi contratado para conduzir os protestantes. Nenhuma merenda lhes foi oferecida. Nenhum pagamento por serviços prestados lhes foi feito.

Lá pelas 19h, o portal dos dois mais importantes jornais paulistas trazia informação contraditória.

Manchete do Estadão 16 ago 2015

Manchete do Estadão online
16 ago 2015

No mundo todo, estimar quantidade de participantes de manifestação de rua é tarefa privativa da polícia. Helicópteros, drones e outros aparelhos sofisticados facilitam a operação.

Pois a firma Datafolha, ligada à Folha de São Paulo, resolveu enveredar por esse caminho. Desprezando centenas de milhares de manifestantes, dedicou-se unicamente à marcha paulista. Já tinha feito isso em recentes manifestações – ontem reincidiu.

É inabitual um instituto de sondagem de opinião dedicar-se a esse tipo de tarefa. Não dispõem dos meios que a polícia tem à mão. Assim mesmo, foram em frente. É interessante notar que a contagem do instituto de pesquisa de opinião tem resultado em número sistematicamente inferior à estimativa policial. Desta vez, exageraram.

Manchete da Folha de São Paulo 16 ago 2015

Manchete da Folha de São Paulo online
16 ago 2015

A polícia afirma que 350 mil cidadãos marcharam na Avenida Paulista. Enquanto isso, o instituto garante que só contou 135 mil cabeças. Trocado em miúdos, onde a polícia viu 100 pessoas, o Datafolha só enxergou 38,5. Bizarro, não? «Something is drastically wrong» – algo está terrivelmente errado, como dizem os ingleses.

Se a diferença já é, em si, chocante, mais inquietante é constatar que o resultado do referido instituto é – sistematicamente – inferior ao oficial.

Enfim, as coisas estão nesse pé. Para publicar números tão discordantes, o instituto paulista deve ter particular interesse. Não se costuma abalar uma reputação por dez merréis.

Frase do dia — 135

«O País está violento, intolerante, raivoso, necessitando urgentemente de um poder moderador/pacificador, cuja tarefa se inicia pela retomada de valores como legalidade, compromisso com a verdade, probidade, civilidade e respeito ao contraditório.

O acirramento de ânimos pode ser eficaz na luta política, mas acaba contaminando a sociedade quando a dinâmica do conflito e do vale-tudo sem regras nem limites é incorporada como prática cotidiana no exercício do poder.»

Dora Kramer, em sua coluna do Estadão, 11 maio 2014.