Glanage

José Horta Manzano

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso – assim reza antiquíssimo provérbio português. É verdade. O youtube está cheio de vídeos filmados, às vezes, por marinheiros de poucas águas, mostrando particularidades e curiosidades daqui e dali. Hoje vou falar de uma prática comum na França, sobre a qual ainda não assisti a nenhum vídeo. Talvez a prática esteja em vigor também em outros países, não tenho certeza. Vou falar do que sei.

Como já sabem meus atentos leitores, os franceses têm palavra para tudo. E usam. Já nós somos menos rigorosos nesse particular. Portanto, na ausência de “similar nacional”, vou usar a palavra francesa e explicar o significado. Vai aqui um glossário dos substantivos (todos masculinos em francês):

Glanage: ato de catar restos que a colheita deixou para trás
Maraudage: ato de furtar antes da colheita
Grappillage: ato de colher no pé ou na planta alheia
Râtelage: ato de colher em terra alheia com uso de ferramenta

Não sei quando começou a ser regulamentado o glanage, mas é prática antiquíssima. Acredito que estivesse codificado já na Idade Média. Trata-se da prática de catar restos da colheita, deixados para trás. As colhedeiras modernas são eficazes, mas sempre deixam cerca de 1% de restos não colhidos. Num plantio de batatas, por exemplo, numa gleba que produz 100 toneladas, ainda restará na terra uma tonelada de tubérculos não colhidos. Vale a pena procurar.

Num belo domingo ensolarado de fim de outubro, quando a colheita da batata já terminou, vale a pena gastar algumas horas com a família (especialmente com as crianças, que vão adorar) remexendo a terra à cata de batata. Quem tiver paciência volta para casa com um saco cheio. Para famílias de poucas posses, é uma economia e tanto.

Condições para o glanage legal

Para ser legal, o glanage tem de respeitar os seguintes pontos:

  •  Após a colheita: Só é permitido “glanear” os produtos que tenham caído ao solo (ou ficado enterrados no solo) ao fim da colheita principal.
  •  À mão: O uso de ferramentas (p.ex: rastelo) é proibido, pois transforma o glanage em râtelage, uma prática não permitida.
  •  Durante o dia: O glanage deve ser realizado durante o dia, à vista de todos.
  •  Em terreno não cercado: É proibido “glanear” em campos fechados com cerca, pois trata-se de propriedade privada.
  •  Respeitar os decretos municipais: Verificar com a prefeitura se algum decreto proíbe o glanage no município.

O que é proibido:

  • Maraudage/grappillage: Colher frutas ou legumes diretamente do pé ou da planta não é glanage, é furto.
  • Uso de ferramentas: O râtelage é proibido.
  • Glanage à noite: É proibido.
  • Terrenos cercados: É proibido entrar em propriedades privadas cercadas.

Recomendações importantes:

  • Peça autorização: Embora a lei permita sob certas condições, é sempre bom solicitar a autorização do proprietário ou do responsável pela terra antes de começar a “glanear”, para evitar mal-entendidos ou conflitos.
  • Respeite as quantidades: O espírito do glanage é recolher o que foi deixado para trás em quantidades correspondentes ao consumo familiar, nunca para comercialização.

Pronto, vosmecê já sabe como funciona na França. Mas não recomendo tentar “glanear” no Brasil. Garruchas, trabucos e carabinas correm soltas por aí. Prudência!

Dia do jejum

José Horta Manzano

Você sabia?

Não tem como escapar: a agricultura, desde sempre, depende dos caprichos do clima. Sol, chuva, frio, calor influem sobre a quantidade e a qualidade da colheita. Nos tempos de antigamente, o homem não tinha como conservar alimentos. Sobreviviam todos com o que se colhia a cada ano.

A escassez de açúcar impossibilitava a conservação de frutas sob forma de doce ou geleia. Sal também era raro, o que tornava problemática a preservação de carnes e peixes. Congelamento? Num tempo em que não havia eletricidade, nem pensar! A desidratação, por exposição ao sol e ao vento, podia ser utilizada. Mas nem todo alimento se presta a ser conservado por secagem.

pruneau-1Assim, habitantes de regiões temperadas, com estações do ano bem definidas, só dispunham de alimentos frescos na metade do ano em que o clima permite. Passado esse período, sobreviviam com os cereais colhidos no outono, principalmente trigo e suas variedades. Missas, rezas e novenas eram dirigidas ao Altíssimo para garantir boa safra. Ao final da colheita, era importante fazer um gesto de agradecimento e de reconhecimento.

Os tempos mudaram. Hoje em dia, o mercadinho da esquina oferece, o ano inteiro, frutas e legumes vindos do outro lado do planeta. Mas certas tradições, geralmente ligadas à religião, permanecem. O dia de ação de graças, comemorado a cada mês de novembro nos EUA (Thanksgiving Day) é um exemplo.

pruneau-2A Suíça, país de agricultura pobre, também já sofreu muito, no passado, com adversidades climáticas. Hoje não é mais assim, mas certas tradições permanecem. Séculos atrás, cada região tinha seu dia, sua hora e seu rito para agradecer aos céus pela colheita. Coisa de duzentos anos pra cá, o dia de ação de graças foi unificado. Ficou combinado que terceiro domingo de setembro(*) seria dedicado ao recolhimento agradecido.

Desde então, a cada ano, a festa ‒ se é que se pode dizer assim ‒ é comemorada, para que ninguém se esqueça de que o bem-estar é resultado de trabalho duro. Para uns, é dia de oração. Outros fazem penitência. O mais comum, principalmente na região em que vivo, é o jejum. Até um século atrás, jejuar significava deixar de almoçar e passar o dia orando na igreja ou no templo. Daí o nome que o dia leva até hoje: Jeûne fédéral ‒ Dia Federal do Jejum.

pruneau-3Com o passar dos anos, o jejum rigoroso foi substituído por um almoço frugal, constituído unicamente de uma torta de ameixa. No Brasil, todos conhecem a ameixa preta, aquela que se compra já seca e que serve para ornar o manjar branco. Pois o pruneau (em francês) ou Zwetsche (em alemão) é uma variedade da mesma fruta, só que em estado natural, utilizada logo após a colheita.

Que seja o único alimento, que substitua o almoço ou que sirva de sobremesa, a torta de ameixa não pode faltar no Dia Suíço do Jejum. Este ano, cai justamente hoje, terceiro domingo de setembro. No Cantão de Vaud, cuja capital é Lausanne, a celebração não se limita ao domingo. A segunda-feira que se segue é dia feriado. Dizem as más línguas que é pra desintoxicar os que, na véspera, se empanturraram de torta de ameixa e café com leite. Há de ser intriga da oposição.

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(*) Fazendo exceção à regra, o Cantão de Genebra tem seu dia de ação de graças na quinta-feira que segue o primeiro domingo de setembro.

Super-regulação à francesa

José Horta Manzano

A lenta maturação que resultou no que hoje conhecemos como União Europeia deu bons frutos. O principal objetivo foi atingido: acabaram-se as guerras. Está pra fazer 70 anos que, nos litígios entre membros da União, não mais se recorreu às armas.

Escada 1Um objetivo secundário muito positivo tem sido a harmonização. Até 50 anos atrás, cada país tinha peculiaridades: sua moeda, suas unidades de medida, suas normas técnicas. As discrepâncias não desapareceram de todo, mas o panorama se apresenta, hoje, bem menos acidentado que há meio século.

No entanto, vez por outra, alguma norma votada pelo parlamento europeu vai longe demais. São casos de super-regulação. Se é importante traçar linhas gerais, não convém exagerar no detalhamento, sob risco de sufocar o cidadão.

No final do ano passado, o Ministério do Trabalho francês decidiu aplicar com exagerado rigor uma diretiva europeia visando à proteção da infância e da adolescência. Proibiu que menores de idade trabalhassem «na altura». A intenção do legislador há de ter sido proteger adolescentes de cair de um telhado, por exemplo.

É louvável a preocupação do parlamento com a juventude. Mas é pena não terem levado em conta que nem só os telhados iam entrar no campo de aplicação da nova norma, mas também outras atividades bem menos arriscadas. Nos primeiros meses, ninguém se deu conta do problemão que estava armado. Agora, que a chegada da primavera cobriu árvores de flores, a ficha caiu.

Colheita de maçã

Colheita de maçã

Nos meses de férias, milhares de jovens entre 16 e 18 anos procuram um bico temporário para ganhar um dinheirinho. Uma atividade bastante concorrida é a colheita de frutas ― a apanha, como dizem nosso amigos lusos. Maçãs, peras, cerejas, pêssegos dão em árvore, como todo o mundo sabe. Embora não sejam altas como mangueira ou abacateiro, as árvores frutíferas da Europa não permitem que se lhes alcancem os galhos superiores sem uma escadinha.

Escadinha? Opa, não pode! Para cumprir a lei com rigor, um adolescente não pode trabalhar nem em cima de uma cadeira. Como fazer? Os arboricultores estão muito preocupados. Daqui a alguns meses, chega a época de colher e a mão de obra vai faltar. Estudantes também estão decepcionados.

Talvez o Ministério do Trabalho volte atrás e anule o decreto. Não será fácil, dado que o orgulho das autoridades é às vezes mais forte que a razão. Se nada mudar, os jovens terão de se conformar com colheita de morangos, de abóboras e de legumes. Não precisa de escada.