Que ninguém durma

José Horta Manzano

Num país onde cultura – convenhamos – não é a preocupação central, acontecem lances de pasmar. Não sei quem será o responsável pelo nome atribuído a cada operação da Polícia Federal. Seja(m) ele(s) quem for(em), tiro o chapéu.

Giacomo Puccini (1858-1924), compositor italiano

Giacomo Puccini (1858-1924), compositor italiano

Quando, em 1957, surgiu a chanchada Tem boi na linha, o velho Felipe Jorge, meu professor de Português, escandalizou-se: «Como é que ousaram lançar filme com erro gramatical no título?» – exclamava. Para o venerando mestre, o fim do mundo devia estar se aproximando.

Turandot 2Apesar da apreensão do lente, o mundo não acabou. Sessenta anos depois, o filme Que horas ela volta?(sic) prova que o boi continua na linha. Decididamente, o zelo pela linguagem correta ainda não entrou no rol das preocupações de quem dá título a filmes.

Já a PF mostra um surpreendente esmero nesse aspecto. Confesso que tive de pesquisar pra saber que diabo significava Satiagraha. A vistosa operação atual, que uns escrevem Lava Jato, outros Lava-jato, mas que pessoalmente prefiro grafar Lava a Jato, é outro exemplo de presença de espírito. Faz alusão à lavagem de sujeira oculta debaixo do tapete e avisa que não será feita com vassoura de piaçaba, mas com jateamento dos bons.

Boi Barrica, My Way são outros títulos sugestivos. Mas, com este novo que saiu ontem – Nessun dorma –, chegamos a um patamar músico-poético-simbólico nunca antes atingido.

Turandot 1Nessun dorma é a grande ária do personagem Calaf, cantada no terceiro ato da ópera Turandot, de Giacomo Puccini. Fazendo eco à ordem dada pela princesa Turandot, Calaf repete que ninguém deve dormir aquela noite em Pequim.

Na ópera, o objetivo da vigília é descobrir o nome do príncipe, custe o que custar, antes do romper da aurora. No Brasil, o propósito da PF é relembrar aos que tiverem cometido «malfeitos» que ainda há tapetes por levantar e que o jateamento está longe de terminar.

Interligne 18h

Há uma excelente gravação da ária Nessun dorma, feita ao vivo em 1994 em Los Angeles, quando do encontro dos três grandes tenores da época: Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti com orquestra dirigida por Zubin Mehta. Foi justamente a peça que encerrou o concerto. Clique aqui quem quiser recordar.

Que trapalhada!

José Horta Manzano

A Cinematográfica Atlântida, criada no começo dos anos 40, especializou-se nas chamadas chanchadas(*), gênero próximo do vaudevile burlesco. Durante 20 anos, produziu mais de meia centena de filmes. Depois, os tempos mudaram, a televisão criou músculos e acabou se impondo. A Atlântida não aguentou o baque e fechou seus estúdios.

Chanchada

Chanchada

Na época em que a companhia cinematográfica nacional encerrava suas atividades, apareciam os primeiros filmes com o personagem James Bond, agente dos serviços secretos britânicos. Contavam histórias rocambolescas, engalanadas por beldades de fechar o comércio e animadas por espetaculares efeitos especiais. No final, o espião e galã, de aparência eternamente impecável ainda que tivesse atravessado um deserto a pé, era sempre vencedor.

Dois meses atrás, com a defecção de Edward Snowden, teve início uma nova história em capítulos. É uma história real, começada como um bom filme de James Bond e que, pelo que o sacolejo da carroça indica, periga terminar em chanchada. Os capítulos têm trazido trapalhadas de dar inveja aos Três Patetas ― os Three Stooges, cômicos do cinema americano dos anos 30. Uma impressão geral de amadorismo impera.

Tudo começou quando um certo senhor Snowden, pequeno funcionário de uma empresa terceirizada contratada pelos serviços secretos americanos, teve um súbito acesso de dom-quixotismo. Ou terá sido de estrelismo, é difícil saber. O fato é que o homem fraudou a confiança que nele haviam depositado seus empregadores e se apoderou de informações que não lhe eram destinadas. Achou de bom alvitre divulgá-las. Estava armada a primeira trapalhada: como é possível que informação confidencial de tal importância seja deixada ao alcance de um funcionário não graduado?

Em seguida, nosso protagonista confia as informações ao correspondente de um jornal inglês, baseado no Rio de Janeiro. Por que essa escolha? Por que um jornal britânico? O Reino Unido é extremamente severo com toda transgressão. O amador Snowden certamente desconhecia esse pormenor. Melhor teria feito se optasse por um jornal francês, italiano, ou de qualquer outro país menos rigoroso com essas bizarrias.

O senhor Greenwald, correspondente do jornal inglês, teme ausentar-se do Brasil. Pressente que, assim que puser os pés em terra estrangeira, será detido e extraditado para o Reino Unido ou para os EUA. Assim, para fazer chegar certas informações a uma jornalista na Europa e de lá trazer outras, serviu-se de seu companheiro brasileiro como portador.

James Bond

James Bond

Parece brincadeira: deixou que o plano de viagem do amigo incluísse uma escala… em Londres! Justo ele, que conhece como poucos a teia de espionagem mundial, deveria saber que, ao dirigir os holofotes sobre si mesmo, tornou-se uma das pessoas mais vigiadas do planeta. Todos os seus atos e gestos estão sendo perscrutados e anotados em Londres e em Washington.

Em mais uma trapalhada ― desta feita, de autoria dos serviços secretos britânicos ―, o emissário de Greenwald foi detido quando da escala londrina. Só foi liberado depois de revistado, interrogado durante horas e despojado dos objetos e das informações sensíveis que carregava.

A desastrada intervenção da polícia britânica teve duas consequências, ambas nefastas. Primeiro, trouxe à ribalta um caso que já andava meio esquecido. Segundo, incomodou um cidadão brasileiro, obrigando Brasília a um protesto formal e despertando indignação no povo brasileiro. De tabela, cutucou nossos aliados bolivarianos. Como se sabe, nossos vizinhos de parede não deixariam passar esta excelente oportunidade de esbravejar contra o «império», em cuja conta debitam todos os males do globo.

Há maneiras mais sutis de subtrair um PC, um telefone celular e alguns bastõezinhos de memória. Uma valise pode desaparecer, por exemplo. Pode-se até organizar um pseudoassalto. Afinal, quem pode o mais, pode o menos.

E assim vai a valsa, de trapalhada em desastre. Os serviços secretos americanos, Snowden, as autoridades russas, Greenwald, os serviços secretos britânicos, todos deram sua contribuição para a geleia geral. Mas o fim do filme já se conhece: Snowden e Greenwald condenaram-se a si mesmos a um degredo ad vitam æternam. O primeiro cumprirá sua pena nas estepes siberianas. Já o segundo teve mais sorte: poderá circular entre Oiapoque e Chuí, com direito a mergulho nas águas de Copacabana.

Espiões continuarão espionando e serviços secretos continuarão servindo e secretando. A Terra não vai parar de girar. Francamente, não se fazem mais bons filmes como antigamente.

(*) Chanchada ― do espanhol, por via platina. Pelas bandas do Rio da Prata, significa baixeza, deslealdade, aquilo que é informal, enganoso. No Brasil, assumiu significado mais macio.