O jeitinho

by Caio Gómez (1984), desenhista brasiliense

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 30 agosto 2024

Todo povo tem um conjunto de características próprias que o distinguem. Assim, também no Brasil temos atributos que perpassam a população. Mas vamos examinar primeiro as características que não costumam ser associadas ao brasileiro.

O brasileiro não tem a aplicação dos povos do Extremo Oriente, em especial o japonês. De fato, um país com muita gente e pouca terra, como o Japão, exige de seus habitantes qualidades tais como paciência, comedimento, rigor e aplicação. Se cada um agisse sem se importar com os demais, o país não teria alcançado seu atual nível de civilização.

O brasileiro não tem a audácia dos colonizadores da América do Norte. Diferentemente dos que para cá vieram, muitos dos imigrantes que povoaram aquelas terras deixaram a Europa na esteira de perseguições religiosas ou políticas. Vinham com a família, de mala e cuia, com a intenção de fincar pé para nunca mais voltar. Os rigores do clima recompensaram os audazes e deixaram os timoratos na beira da estrada.

Os brasileiros não compartilham o ultra-conservadorismo resignado dos povos da Índia que, neste 21° século da Era Cristã, ainda toleram viver numa sociedade estratificada em castas, sistema que ainda não implantou um elevador social. Quem nasceu na casta A nunca será aceito na B, muito menos na C. Ainda que, em nossa terra, alguns ainda torçam o nariz para o 13 de maio da princesa Isabel, felizmente não são maioria nem imprimem seu egoísmo na lousa das qualidades nacionais.

No meu entender, a faceta mais significativa da alma nacional responde pelo simpático nome de “jeitinho brasileiro”. Todos sabemos o que quer dizer, só falta definir com precisão. Tal como a palavra “saudade”, nosso jeitinho resiste a toda tentativa de definição clara e rigorosa. Será justamente porque clareza, rigor e precisão não combinam com o jeitinho.

Uma terra em que milhões conseguem sobreviver e seguir adiante com o salário de miséria que lhes toca mostra que seu povo tem poderes mágicos, inexplicáveis, quase atávicos. Em outros horizontes, uma revolução popular já teria defenestrado todo o andar de cima. (Para, em seguida, recomeçar do zero e, poucas décadas depois, retornar ao mesmo estado de coisas. Mas essa é uma outra história.)

Nosso jeitinho inclui atitudes altamente positivas. Nossa tolerância para com os que se desnorteiam é proverbial. Centenas de movimentos religiosos tratam de reintegrar no rebanho as ovelhas extraviadas. A flexibilidade de nossas atitudes tem algo de notável. Quem não tem cão caça com gato é ditado que faz sentido entre nós. O brasileiro não é de empacar se lhe falta um ingrediente para a receita: dá rápido um jeito.

Do lado menos charmoso, nosso jeitinho dá vazão a comportamentos e atitudes pouco elogiáveis. “Leis que pegam” vs “leis que não pegam” é fenômeno tipico nosso. E isso nos parece normal. Todos nos conformamos com a falta de rigor e com a falta de apego à lei. Cidadãos que são condenados hoje a pesadas penas e “descondenados” amanhã não causam escândalo. Costumamos nos resignar com imprecisões da lei. Criminosos bacanas que escapam à justiça contam com nossa leniência – a frouxidão dos procedimentos legais não nos revolta.

Esse coquetel de imprecisão, elasticidade e ambiguidade se derrama e se aninha nos recônditos da alma nacional. Essa síndrome de informalidade se entranha em instâncias em que sua presença é extravagante. Ainda recentemente doutor Moraes, ministro do STF, frequentou as manchetes, na sequência de uma denúncia de que foi vítima: foi acusado de valer-se de procedimentos informais para angariar subsídios para processos que relata.

Só o futuro nos dirá se a denúncia contra o magistrado terá consequências. A bem considerar, ela é a prova de que o jeitinho nacional, que a gente imagina se restringir a castas inferiores, atravessa todos os estratos sociais e se faz presente até na cobertura deste imenso condomínio.

No regime do brasileiro, se arroz com feijão são o prato principal, o jeitinho é a mistura.

A Escola Normal

José Horta Manzano

Lá pelo último quartel do século XIX, a elite pensante do Brasil sentia-se pouco à vontade. As Américas, tanto a inglesa quanto a hispânica, haviam dado origem a novos países. Inspiradas no exemplo norte-americano, todas as antigas colônias espanholas tinham adotado ― pelo menos oficialmente ― o regime republicano.

O Brasil, na visão positivista daquele fim de século, fazia figura de patinho feio. Enquanto os vizinhos elegiam seu presidente, nós aqui mantínhamos uma monarquia hereditária baseada na lei do sangue, como na Idade Média. Pior que isso: o País era o último pedaço do continente onde ainda subsistia a escravidão. Por sinal, também ela baseada na lei do sangue.

Só um parêntese. Desde que, pela primeira vez, um agrupamento humano entrou em conflito com outra tribo, pareceu natural que os vencidos fossem escravizados pelos vencedores. Fazia parte dos costumes. Foi assim durante milênios. Já nossa escravatura era de outra natureza, uma bizarrice que fugia à lei da guerra. Era um servilismo de casta. A jus sanguinis ― a lei do sangue ― traçava a rota de cada indivíduo. Filho de escravo era escravo e filho de homem livre era homem livre. Fechemos o parêntese.

Quando a situação de uma comunidade não vai lá muito bem, é costume procurar um culpado. A Alemanha nazista designou o povo judeu como bode expiatório e apontou-o como responsável por todos os males do país. Outras civilizações, em outras épocas, apontaram culpados para suas mazelas.

Para muitos dos letrados daquela época, a razão do relativo atraso do País pareceu evidente: o que travava o progresso era o regime, simbolizado pelo Imperador. A abolição da escravidão, em 1888, não acalmou os ânimos. Pelo contrário. Os grandes proprietários agrícolas, subitamente privados da habitual mão de obra gratuita, aliaram-se aos republicanos.

Daí para a frente, sabemos todos o que aconteceu. Em novembro de 1889, o Imperador foi apeado do poder e despachado para a Europa com toda a família.

Escola Normal de São Paulo Inauguração - 1894

Escola Normal de São Paulo
Inauguração – 1894

A partir daí, um punhado de bem-intencionados decidiu que era chegada a hora de iniciar o caminho do progresso. Havia que regenerar o País. Precisava despertá-lo da letargia em que se tinha acomodado durante a era imperial. E por onde começar? Mas… por uma Instrução Pública de qualidade, cáspite!

Em São Paulo, homens de visão se empenharam em promover um ensino público de bom nível. Para ensinar alguém, é preciso aprender primeiro. E era justamente o que fazia falta. Numa São Paulo à qual aportavam diariamente levas de novos habitantes, era urgente formar professores.

Um prédio novinho em folha foi encomendado a Ramos de Azevedo, aquele mesmo arquiteto de cujas pranchetas sairia, alguns anos mais tarde, o Theatro Municipal da cidade.

O imenso edifício dedicado ao ensino público foi inaugurado em 1894. Para lá foi transferida a Escola Normal, que antes funcionava em local exíguo e inadequado.

Aquela que se tornaria, meio século mais tarde, a maior cidade do País, sentiu-se orgulhosa de seu pioneirismo. Bom número de jovens podiam agora ser acolhidas para serem lá preparadas para transmitir seu saber às novas gerações.

A foto que acompanha este artigo, recebida por cortesia de Wilma Legris, foi tirada dia 2 de agosto de 1894, quase 120 anos atrás. Mostra os integrantes do novo estabelecimento de ensino, situado na atual praça da República. O prédio ainda está lá, mas já não acolhe bandos de alunos como fez durante 70 anos: é hoje sede da Secretaria da Educação.

Cliquem sobre a foto para ampliá-la. Reparem na indumentária dos figurantes. Se a chapa fosse em cores, não faria muita diferença: fora uma que outra exceção, os trajes são quase unanimemente pretos ou brancos. A hierarquia é acintosamente marcada. Os personagens mais importantes, todos do sexo masculino, sentam-se à frente. Conforme as filas se vão sucedendo, aparecem figuras menos eminentes. Presumivelmente, os professores e, em seguida, as alunas. Por último, lá no fundão, há uma fileira de homens. Serão serventes, bedéis, auxiliares.

Todas as mulheres ostentam o mesmo penteado, em perfeita harmonia com os usos da época. Os homens trajam o que, com bastante propriedade, chamávamos terno, ou seja, um conjunto de três peças: paletó, colete e calça. O nome ainda perdura, mas o colete anda meio fora de moda.

Fico aqui a imaginar a incongruência que era esse povo se vestir como em Londres ou Paris para enfrentar nossas ruas poeirentas e barrentas, subindo e descendo de bondes puxados a burro, sob um calor tropical.

Enfim, bem ou mal vestidos, republicanos ou monárquicos, cada um deles deu sua contribuição. Não se pode dizer que o grosso da população do Brasil deste século XXI seja um modelo de erudição. Mas, sem o suor ― no sentido literal ― desses pioneiros, o nível geral de instrução seria ainda mais baixo.

Fica aqui expressa nossa reverência.