O chuchu de cada um

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 29 julho 2023

Em 1939 Carmen Miranda embarcou para os Estados Unidos. No horizonte, já assomavam sinais ameaçadores da guerra que estava para estourar. Para os serviços americanos de inteligência, estava fora de questão que o Brasil, país mais importante da América Latina, se alinhasse com as ditaduras nazi-fascistas.

Junto a outros esforços para cativar nossa simpatia, o governo de Washington decidiu importar uma artista brasileira com potencial de mostrar ao público americano uma faceta atraente e simpática de nosso país, e, ao mesmo tempo, levar os brasileiros a se orgulharem do sucesso de uma compatriota nos EUA.

A escolha recaiu sobre Carmen Miranda e ela viajou. Um ano depois de ter deixado o Brasil, voltou para apresentações no Rio de Janeiro. Não se sabe ao certo a razão – talvez por pura inveja –, a recepção a ela foi pouco calorosa. Um diz-que-diz pérfido chegou a espalhar que a artista, depois de um ano fora, tinha ganhado dinheiro mas perdido o ritmo e a graça.

Luiz Peixoto e Vicente Paiva compuseram então o samba “Disseram que eu voltei americanizada” especialmente para ela. A letra repele veementemente toda “americanização” e termina: “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.

Chuchu (ou maxixe) é legume popular. Na cabeça de pobre, “rico não come chuchu” (embora nem sempre seja verdade). O fato é que, lançada a música, Carmen logo recuperou os fãs ressabiados. O povão voltou a se identificar com a cantora, que, mesmo enricada, continuava comendo chuchu.

Antes de chegar à Presidência, o jovem Jânio Quadros teve ascensão fulgurante. Em pouco mais de dez anos foi vereador, deputado estadual, prefeito, deputado federal e governador. Desde muito cedo, frequentou palácios, recepções e banquetes. Na base de seu eleitorado, porém, estavam pessoas simples, de parco poder aquisitivo. Não ficava bem que imaginassem o “político que varria a bandalheira” levando vida de rico, longe do quotidiano das massas.

Para desfazer essa impressão, Jânio sempre cuidou sua aparência quando discursava em comício. Vinha desgrenhado e com caspa no ombro. Lá pelas tantas, tirava do bolso um sanduíche de mortadela já mordido e explicava ao auditório que não tinha tido tempo de almoçar (ou jantar, conforme o caso). Era sua maneira de mostrar que continuava comendo chuchu.

Logo no início de sua gestão, Jair Bolsonaro foi um dia apanhado comendo lagosta com um embaixador estrangeiro. Em 2021, enquanto brasileiros empobrecidos substituíam carne por ovo, foi fotografado exibindo a embalagem do prato de resistência de seu almoço daquele Dia das Mães: picanha de R$ 1.799 o quilo. Pegou mal.

Decerto aconselhado por algum assessor, o então presidente resolveu mostrar humildade. Um dia, deixou-se filmar enquanto comia, junto a uma barraquinha de rua, uma porção de frango com farofa. Com as mãos, sem talher. Era sua maneira de dizer que continuava comendo como o povão. Só que, desastrado, emporcalhou-se todo, espalhando farofa na calça e na calçada. A emenda ficou pior que o soneto. Seu chuchu não convenceu.

No quesito viagens internacionais, Lula 3 começou a todo vapor. Em seis meses, tinha visitado uma dúzia de países distribuídos por três continentes. Um luxo. Mas o partido em que ele militou a vida toda (PT) prega, em teoria, um mundo de desigualdades sociais aplainadas. Assim, não fica bem o presidente, só porque presidente é, ser recebido por figuras principescas, participar de banquetes e comer do bom e do melhor sem ao menos trazer um pratinho de doces para os catadores.

Um assessor mais atento – ah, esses assessores! – talvez tenha chamado a atenção do chefe para esse contrassenso. Luiz Inácio resolveu remediar. Ao retornar de recente viagem à França e à Itália, queixou-se publicamente das refeições que lhe costumam oferecer no exterior. Disse que, quando viaja, não tem ocasião de comer do que gosta, na quantidade que lhe apraz. Afirmou que, nos banquetes, “as porções são minúsculas”, é “tudo pequenininho”, não tem uma” bandejona pra gente se servir”. Dia seguinte, a mídia francesa e a italiana não perdoaram a gafe.

É interessante perceber que as quatro figuras aqui descritas encontraram na comida o escudo contra acusações de elitismo. Esses quatro não devem ser os únicos. O mundo é vasto e cada um tem sua maneira de dizer que adora comer chuchu.

Quem não gosta de samba

José Horta Manzano

No quesito harmonia, o Bando da Lua foi pioneiro entre os conjuntos vocais brasileiros. Constituído já na primeira metade dos anos 1930, foi na virada para a década seguinte que, na trilha do triunfo internacional de Carmen Miranda, subiu à notoriedade. É que, convidados a acompanhar a ‘Pequena Notável’ na nova carreira, os rapazes permaneceram anos nos EUA, onde trabalharam em espetáculos e em quase dez filmes ao lado da estrela.

Entre outros sucessos, gravaram em 1940 Samba da minha terra, composição de um então pouco conhecido Dorival Caymmi, jovem de 26 anos. Nem Caymmi nem o Bando da Lua poderiam imaginar que, 80 anos mais tarde, gravado e regravado por uma coleção de artistas, o samba ainda estaria no ouvido de todos.

Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé

Quem é que não conhece?

O estribilho vale como metáfora permanente. Me lembrei dele hoje de manhã. É que, ao abrir o jornal, me dou conta de que, nas altas esferas da República, o desfile de insanidades continua.

O doutor que nos governa acaba de contratar seu quarto ministro da Saúde. É o homem que, no papel, deve cuidar da saúde dos brasileiros e conduzir o país a bom porto nesta pandemia. No papel, disse eu. Vamos ver se, na prática, a teoria é a mesma. É permitido ficar com um pé atrás.

A esta altura do campeonato, em que a forte perturbação que acomete a mente do presidente é conhecida de todos, o que é que levaria essa gente fina a aceitar um posto no governo do capitão?

  • A atração do vil metal
    tipo ‘agora vou abrir conta na Suíça’?
  • A vaidade irresistível
    tipo ‘vejam até onde cheguei’?
  • Um irrefreável masoquismo
    tipo ‘adoro ser humilhado em público’?
  • A necessidade de fugir da justiça
    tipo ‘devo, não nego, mas se me cobrarem, tenho foro privilegiado’?
  • Convicção sincera de que o presidente está com a razão
    tipo ‘ele é meu ídolo, portanto está sempre certo’?
  • A ingenuidade absoluta
    tipo ‘dãããã’?

Alguma razão haverá. O mistério parece insondável. No entanto, a solução é às vezes tão evidente, que ninguém vê. A resposta, de tão simples, parece estar na cara. Não precisa buscar nos escritos de Freud. Basta reler a metáfora de Caymmi e adaptá-la ao nosso tempo. Assim.

Quem aceita convite de Bolsonaro
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé.

Com Trump presidente, um de seus eleitores não teria nascido

Ruy Castro (*)

Um amigo meu, filho de brasileiros, mas nascido nos EUA em 1948, cidadão americano e residente a vida inteira na Califórnia, vai votar em Donald Trump. Tento convencê-lo de que, se Trump fosse presidente em 1948, seus pais não teriam se conhecido na casa de Carmen Miranda em Los Angeles, muito menos teriam se casado, e ele não existiria. Por uma razão: com as restrições que Trump acha que se deve impor à imigração, os dois, mulatos, brasileiros e pobres, dificilmente teriam entrado nos EUA.

Houvesse um Trump na Casa Branca em algum momento do século 20, muita gente que contribuiu para o poderio americano, inclusive na área de espetáculos, não teria chegado sequer a Ellis Island, porta de entrada dos EUA para milhões de refugiados da fome e da perseguição religiosa na Europa. Eis alguns.

by Silvano Gonçalves Rosa Mello (1974-), desenhista mineiro

by Silvano Gonçalves Rosa Mello (1974-), desenhista mineiro

Os meninos Asa Yoelsen e Israel Baline, foragidos dos pogroms da Rússia nos anos 1890, não teriam se estabelecido na América, adotado os nomes de, respectivamente, Al Jolson e Irving Berlin, e inventado a música americana. Aliás, deve-se a Berlin dois hinos caros aos EUA e que Trump vive cantando em cerimônias: o de Natal, White Christmas, e o triunfal God Bless America.

Instituições como Fred Astaire, os Irmãos Marx, Frank Sinatra, Johnny “Tarzan” Weissmüller, Rita Hayworth, Kirk Douglas, Jerry Lewis, Dean Martin, Tony Bennett, Stanley Kubrick, Natalie Wood, Raquel Welch são ou eram, todos, americanos de primeira geração. Bastava um parágrafo na lei para que seus pais não tivessem saltado do navio e eles nunca aportassem em Hollywood.

Aliás, nem haveria Hollywood – porque foram judeus europeus como Adolph Zukor, Carl Lemmle, William Fox, Samuel Goldwyn, Louis B. Mayer e os irmãos Warner que a inventaram.

Se Trump ganhar e mandar construir um muro em volta do meu amigo, será bem feito.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. O texto foi publicado na Folha de São Paulo.

Tico-tico no fubá

Everaldo José dos Santos (*)

Vibrante, buliçoso e ao mesmo tempo sentimental, Tico-tico no fubá é o exemplo perfeito do choro clássico, em três partes, composto na melhor tradição do gênero.

Predestinado ao sucesso, impressionou logo em sua primeira apresentação, em 1917, num baile em Santa Rita do Passa Quatro, quando ganhou o nome de Tico-tico no farelo. Razão do nome: a animação dos pares que dançavam em grande alvoroço, provocando o comentário do autor: “Até parece tico-tico no farelo…”.

Depois, talvez porque já existisse um choro homônimo (de Canhoto), passou a Tico-tico no fubá. No entanto, apesar da estréia vitoriosa, a obra-prima de Zequinha de Abreu só chegaria ao disco quatorze anos mais tarde, gravada pela Orquestra Colbaz, criada e dirigida pelo maestro Gaó. Sucesso absoluto, o disco permaneceu em catálogo até a década de quarenta, época em que a composição alcançou o auge da popularidade.

Tico-ticoContribuiu para isso sua internacionalização comandada pelos americanos que, no curto espaço de cinco anos, a incluíram em cinco filmes: Alô amigos (1943), A filha do comandante (Thousands Cheer, 1943), Escola de sereias (Bathing Beauties, 1944), Kansas City Kitty (1944) e Copacabana (1947). Neste último, foi cantada por Carmen Miranda.

A partir de então, recebeu dezenas de gravações, tornando-se uma das músicas brasileiras mais gravadas de todos os tempos, no país e no exterior. Entre seus intérpretes, salienta-se a organista Ethel Smith (1910-1996), que levou a música ao hit-parade americano.

Tico-tico no fubá é regularmente executada por veteranos pianistas de Nova Orléans, como peça local. Sofre, no entanto, algumas alterações melódicas e rítmicas, que a fazem assemelhar-se a um tango, bem ao estilo da segunda parte de Saint Louis Blues.

Essencialmente instrumental, a peça tem letra brasileira de Eurico Barreiros e Aloísio de Oliveira e versão inglesa de Ervin Drake. Nenhuma das letras vingou, apesar do relativo sucesso das gravações de Ademilde Fonseca, em sua estréia em disco, e das de Carmen Miranda, nos Estados Unidos.

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(*) Everaldo José dos Santos, apaixonado pela MPB da Velha Guarda, edita o blogue Cifrantiga.blogspot.com.br/

Cartilha da Fifa

José Horta Manzano

Na mais recente edição de sua revista semanal, a Fifa tirou do forno, fresquinho e crocante, um manual à atenção de estrangeiros desavisados que porventura se arrisquem a visitar o Brasil por ocasião da «Copa das copas».

O Estadão não gostou. Chamou de «cartilha» o que não passa de um punhado de obviedades abordadas num tom jocoso. O jornal paulista chega a tratar a «cartilha» de polêmica. Só falta desafiar a Fifa para um duelo de cavalheiros, como derradeiro recurso para lavar a honra. Qual… O Estadão está a cometer um rematado exagero.

O artigo ― assinado por Flávia Lopes Sant Anna e pelo editor da revista, Thomas Renggli ―, não faz mais que repisar clichês sobre comportamentos habituais dos brasileiros. Alguns desses chavões, aliás, fazem parte do arsenal de qualidades das quais nosso povo se orgulha.

«Manual» da Fifa ― texto

«Manual» da Fifa ― texto

Falta de pontualidade, lei do mais forte, dificuldade em dizer não, propensão ao contacto físico com o interlocutor ― beijos e abraços. Restaurantes que oferecem quantidades industriais de comida. Tendência a deixar problemas de molho para resolvê-los de afogadilho na última hora. São ou não são características nossas?

Já algumas semanas atrás, o Planalto se tinha indignado com camisetas de forte apelo erótico patrocinadas pela Fifa. A mais alta instância do futebol global reincide: os conselhos aos turistas vêm paramentados com foto de meia página mostrando beldades vestidas de sol.

Que fazer? É assim que somos vistos pelos estrangeiros. Mas, acredite, não há que se indignar. O forasteiro, olho fixo na promessa de prazeres tropicais, passa por cima dos inconvenientes.

Não há inverdades no manual da Fifa. Ele apenas reflete a imagem que, faz séculos, temos mostrado aos que vêm de fora. Os pintores Johann Rugendas e Jean-Baptiste Debret ― que certamente se cumprimentaram nas ruelas do acanhado Rio de Janeiro dos primeiros anos da Independência ― trataram de fazer chegar aos europeus uma imagem paradisíaca destas terras.

«Manual» da Fifa ― ilustração

«Manual» da Fifa ― ilustração

Um século mais tarde, Carmen Miranda, de chapéu de frutas e olhar malicioso, reforçou o padrão. Em nossos dias, nove entre dez estampas brasileiras de propaganda turística mostram sol, praias, pouca roupa, um agradável perfume de vida mansa e de dolce far niente.

Que resultado esperamos? Que turistas nos visitem imaginando encontrar uma Alemanha ou uma Noruega tropical? Que esperança! Eles vêm exatamente em busca das delícias dos trópicos.

Em vez de nos irritar, mais vale seguir o conselho final do manual da Fifa: «Relaxa e aproveita», em português no texto. É versão expurgada do pronunciamento vulgar feito anos atrás por uma senhora de fino trato ― hoje ministra da República.

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Obs:
Horas depois de ter suscitado reação indignada, o artigo desapareceu do site da Fifa.