Jusante e montante

José Horta Manzano

Dizem que os esquimós têm umas vinte palavras para designar a neve. Neve molhada, neve que acabou de cair, neve pisada, neve endurecida, neve caindo, neve com ventania ‒ cada uma delas se descreve com palavra específica. É compreensível. O jardim deles é a neve.

Vento 4Na Europa, as grandes chegadas de população se deram de dentro para fora. Provenientes do interior do continente, bárbaros, germânicos, mongóis, otomanos progrediram em direção ao mar. No interior das terras conquistadas, havia poucas estradas traçadas. O caminho natural eram as rotas fluviais, que conferem ao viajante intimidade com montes e vales. As populações ribeirinhas se tornam especialistas em curvas, corredeiras, correntezas e ventos.

No Brasil, diferentemente da Europa, o grosso da população veio pelo mar. Nos primeiros séculos, praticamente todos os que chegavam iam se estabelecendo na costa. Com a honrosa exceção do São Francisco ‒ e da bacia amazônica, onde poucos se aventuraram nos primeiros tempos ‒, os grandes rios brasileiros navegáveis correm no interior das terras. Exemplo significativo é a bacia do Paraná/Paraguai, que abarca enorme extensão de nosso território para, enfim, desembocar em terras castelhanas.

Vale 2Isso faz que a noção de vale, uma depressão espremida entre terras altas, não venha revestida, no Brasil, da importância estratégica que representa em outros lugares. Os importantes vales do Reno, do Ródano, do Danúbio, do Mississipi não têm equivalente em nossas terras. Rios brasileiros navegáveis, como o Tietê e o São Francisco, não deram origem a notável concentração populacional.

VentoParticularidades como essa influenciam o falar. A neve é rara em nosso território, portanto uma palavra basta para designá-la. Do mesmo modo, não fazem falta termos específicos para indicar a localização de um determinado ponto à beira de um rio em relação a outro ponto situado à margem desse mesmo rio. Contentamo-nos com “rio acima” e “rio abaixo”.

No entanto, as palavras exatas existem. Para indicar um ponto situado no mesmo rio, porém mais abaixo, temos a expressão a jusante. Para nos referir a um ponto situado na direção contrária, a expressão é a montante. Por exemplo, a cidade de Petrolina (PE), à margem do São Franciso, está a jusante de Xique-Xique (BA), que fica quilômetros rio acima. São expressões pouco utilizadas, quase desconhecidas, restritas ao jargão de cartógrafos, agrônomos e geógrafos.

2016-0605-03 IstoéDias atrás, ocorreu um vendaval na região de Campinas (SP). É assim que descrevemos uma tempestade com vento fortíssimo, daqueles de destelhar casa. Pouco importa de que direção venha o vento: se for forte, sempre vendaval será.

É palavra importada. O original francês vent d’aval designa vento forte que vem do oceano, entra pelo vale, sobe o canal fluvial e vai balançar casas e coqueiros situados muitos quilômetros a montante da desembocadura. Em sentido figurado, é útil para nomear sentimento avassalador ‒ vendaval de paixões(*).

Pode-se dizer, sem medo de errar, que a ponta de tapete levantada pela Operação Lava a Jato vem causando um vendaval no andar de cima. Vendaval de pânico.

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(*) Vendaval de paixões é o título brasileiro do filme Reap the Wild Wind, de 1942, com John Wayne e Paulette Goddard.

Gigantesca farsa

Não 1José Horta Manzano

Tudo é questão de hábito. Quem está no centro do palco é, por força dos fatos, personagem do drama sócio-político-econômico que se desenrola no Brasil atual. Assim, não se dá necessariamente conta do grotesco da situação. Para um observador de fora, a percepção é outra.

A escritora e jornalista Lamia Oualalou – autora do livro Brasil: História, Sociedade, Cultura – trabalha como correspondente de jornais franceses. É especializada em assuntos brasileiros e latino-americanos. Seu mais recente artigo, publicado esta semana no portal francês de informação Mediapart, leva o título «Le Brésil se transforme en gigantesque farce» – O Brasil vira farsa gigantesca.

Filme 2Num feliz cotejo, a autora relembra o filme de 1967 A Guide for the Married Man (Diário de um homem casado), dirigido por Gene Kelly. A recomendação subjacente na fita é endereçada a homem casado apanhado em flagrante delito de adultério. Sugere que ele negue a realidade, ainda que pareça absurdo.

Não 2Diante da esposa que o surpreende na cama com outra mulher, o protagonista segue o conselho: nega, nega, nega. Sua denegação da evidência é tão enfática e peremptória que consegue instilar dúvida na cabeça da esposa. Ela chega a imaginar que andou tendo alucinações.(*)

Filme 1Madame Oualalou revela a seus leitores que, no Brasil, a realidade ultrapassa a ficção. E conta a história do presidente da Câmara Federal, acusado de ter recebido 5 milhões de dólares como cota pessoal do roubo à Petrobrás. Explica que não se trata de acusação leviana, mas apoiada em documentação farta liberada pelo Ministério Público suíço. Fico imaginando a incredulidade dos leitores franceses quando a autora assevera que o acusado continua no posto mais alto do parlamento, firme na estratégia de negar, negar, negar.

Não 3A jornalista revela ainda outros capítulos da telenovela (em português no original) que transforma o Brasil, já há alguns meses, em farsa gigantesca. Relata a opinião da ministra da Agricultura, grande proprietária de terras, segundo a qual «a reforma agrária é inútil, pois não há mais latifúndios no Brasil».

Conta também o episódio pitoresco encenado na Câmara Municipal de Campinas (SP), cidade que sedia, por sinal, uma das grandes universidades do país. Explica que os vereadores votaram moção de censura a… Simone de Beauvoir! O qüiproquó deriva da menção feita no Enem de uma frase, considerada sexista, extraída do livro Le deuxième sexeO segundo sexo, obra emblemática da reverenciada Madame de Beauvoir.

Livro 3Para terminar, a correspondente informa que, de Paris, lhe perguntam se a crise econômica e política brasileira vai ser longa. Ela considera que, como se pode deduzir por essas historietas, não se trata de turbulência passageira. O que acontece no Brasil é bem mais grave do que se imagina.

(*) A cena memorável pode ser revisitada no youtube, neste excerto de um minuto e meio.

O trem-bala

José Horta Manzano

Uma primeira licitação está sendo preparada para a construção de um trem-bala ligando três grandes núcleos urbanos brasileiros: São Paulo, Campinas e o Rio de Janeiro. O valor estimado? Uma bagatela: 35 bilhões. Estimativa inicial, natualmente, sujeita a dobrar ou triplicar nos próximos anos. Mas isso é detalhe. O que são 50 ou 100 bilhões para um país rico e sem problemas como o nosso?

Primeira consideração:
São Paulo, Campinas e o Rio de Janeiro são cidades servidas por aeroportos de primeira linha. Uma ponte aérea funciona há mais de 50 anos entre o Rio e São Paulo, com partidas a cada 10 minutos. Quem tem pressa chega logo.

Train 2Segunda consideração:
Os mais de quarenta mil mortos (40’000!) em acidentes rodoviários que o Brasil registra a cada ano revelam uma desgraça nacional, um descalabro. Assistimos, indiferentes, a um genocídio continuado. Uma diminuição no volume de tráfego rodoviário seria mais que bem-vinda.

Terceira consideração:
Falta visão aos políticos brasileiros. Simplesmente porque são gente despreparada para as funções que pretendem exercer. A mentalidade que trouxe os primeiros povoadores europeus da terra tupiniquim continua valendo entre eles: après moi, le déluge. Depois de mim, pode vir até o dilúvio, porque estou aqui apenas para passar bem e ganhar dinheiro fácil. Se a coisa ficar preta, me mando pra Miami. Tchau e bença.

Quarta consideração:
Desde que se implantaram no Brasil nos anos 50, os fabricantes de automóveis, além de montar carros, montaram um grupo de pressão ― em bom português, um lobby ― destinado a abortar todo plano de expansão da rede ferroviária. As pressões foram tão fortes que desde então o governo central deixou até de investir na manutenção da malha existente. O resultado conhecemos todos: os caminhos de ferro do Brasil foram sucateados.

Conclusão:
Mesmo sem levar em consideração os inevitáveis «ajustes» de última hora, 35 bilhões de reais já é muita coisa. Melhor seria se o governo central investisse essa enxurrada de dinheiro na reabilitaçãTrain 3o do transporte ferroviário.

Na Europa, tirando algum caso muito especial e localizado, o transporte público intermunicipal se faz por estrada de ferro. Os trens são frequentes, limpos, bem cuidados, respeitam o horário, viajam a velocidades de cruzeiro entre 100 e 140km/h. Há sistemas de assinatura para viajantes frequentes: paga-se por mês ou por ano, com bom desconto. Tanto se pode escolher assinar por um determinado percurso ou pela rede nacional.

Aviões não se arriscam a levantar voo ou a pousar sob certas condições meteorológicas. Automóveis e ônibus não conseguem trafegar em pistas alagadas. Os trens são mais confiáveis. Chuva, vento, nevoeiro, frio, calor, neve, gelo ― nada impede que cumpram o prometido. O trem leva seus passageiros do centro de uma cidade até o coração de outra. Confortável e silenciosamente e, o que é ainda mais importante: sem poluir.

No Brasil, o material ferroviário foi liquidado, mas sobrou o traçado das linhas. Pode não parecer, mas a existência dessas rotas já é um grande passo: elimina ― ou diminui drasticamente ― o gasto com expropriações.

Por que não reabilitar a linha Campinas-SP-Rio, já existente? Que se refaça o traçado de certas curvas para permitir velocidade mais elevada. Que se reinstalem os dormentes. Que se invista em material, que se reabram as antigas estações, que se construam novas. Tudo isso custará infinitamente menos que um trem-bala. E ainda sobrará muito pano para mangas. Se as malversações permitirem, vai dar para reabilitar toda a rede ferroviária do Sudeste brasileiro.

Conosco ninguém podosco.

A tutela oficializada

José Horta Manzano

A câmara de Campinas (SP) votou e o prefeito sancionou uma nova lei publicada no Diário Oficial de 6 de dezembro de 2012. O novo preceito obriga bares e restaurantes do município a dar desconto de 50% a clientes que tenham passado por cirurgia de redução de estômago.

Fico aqui pensando se não conviria votar também uma lei que obrigasse vendedores de aparelhos de rádio a dar desconto a clientes que comprovassem ter problemas auditivos.

Para não ficar atrás, cinemas deveriam ser obrigados ― por que não? ― a cobrar meia entrada de todos os que conseguissem provar ter acuidade visual abaixo da média da população. Com justificativa médica, evidentemente.

Donos de companhias de transporte coletivo teriam de ser instados a cobrar meia passagem de passageiros obrigados a viajar de pé por falta de assentos suficientes.

Caminhões sem carga, fazendo viagem de retorno, deveriam, naturalmente, pagar apenas meio pedágio. E assim por diante.

Parece brincadeira. Não tivesse saído no Estadão, eu não acreditaria. É impressionante a tendência que se afirma hoje em dia de transferir a terceiros a responsabilidade que deveria ser de cada um.

Quando éramos pequenos, nossos pais tentaram nos inculcar a noção de responsabilidade. Aprendíamos que cada um devia responder por seus atos. Não se esperava que outros fizessem por nós: cada um tinha de fazer sua parte. Essa era a lógica da época.

Hoje percebo que, mais e mais, o Estado mostra um estranho viés paternalista. «Deixe pra lá, filho, que eu faço por você». É um total contrassenso.

Quem fez cirurgia bariátrica e, em consequência, costuma ingerir alimentos em quantidade menor que a média da população deve evitar frequentar rodízios. Ninguém é obrigado a escolher esse tipo de restaurante. Cabe a cada um decidir onde quer almoçar. Se insistir em instalar-se à mesa de um restaurante de preço fixo, terá de conformar-se com a regra geral. Coma mais ou coma menos, o preço será sempre o mesmo.

Pelo andar da carruagem, dentro de poucos anos o povo brasileiro estará completamente infantilizado. Estarão todos de mão estendida à espera de que alguém tome as decisões que mudarão seu destino.

Um admirável mundo novo.