Ladeira abaixo

José Horta Manzano

Entre os candidatos à Prefeitura paulistana, está um arruaceiro. Ele tem sido responsável por comportamentos de garoto de quinta série. Numa demonstração de que não está lá para debater ideia nenhuma, já criou alcunhas para cada adversário, como se numa “stand-up comedy” estivesse. Já provocou, já agrediu, já foi agredido.

Não parece condoído da triste sorte do típico eleitor paulistano, pobre e periférico, que rala o mês inteiro por algumas notas de cem. Sua proposta mais vistosa é a construção de um arranha-céu, como se isso resolvesse os dramas da população. Acostumado a sair à rua rodeado de meia dúzia de seguranças, não consegue entender a tragédia dos paulistanos que, em matéria de segurança, só contam com o anjo da guarda – que às vezes se distrai.

Muita gente acha uma graça aquele rapaz de sotaque forasteiro que entra soltando fogo pelas ventas, bravio como os animais mitológicos do Brasil Central. Tem gente que perde hora de sono só pra assistir a um “debate” entre candidatos à Prefeitura de São Paulo. Ninguém está muito interessado no que ali se diz; estão mais é esperando a hora de o pau comer.

Quando o ambiente esquenta, começam as apostas. Que é que vamos ter hoje? Insulto à mãe alheia? Cadeira voando? Soco de tirar sangue? Senhoras e senhores, façam suas apostas! Rien ne va plus!

Fica a impressão de que, tirando os demais candidatos, que temem perder votos para o exótico adversário, ninguém está se dando realmente conta da periculosidade do candidato semostrador.

O mais preocupante nessa história não é tanto que vença a eleição paulista. Embora já seja impressionante que 20% do eleitorado declarem ter intenção de votar nesse personagem, dificilmente alguém, como ele, com rejeição perto de 50%, conseguirá ganhar uma eleição majoritária.

O que preocupa mesmo é que o candidato Marçal vem arrebentando, uma a uma, as amarras que, até ontem, balizavam e davam ares de seriedade a nosso debate eleitoral. Até aqui, os debates de alta temperatura que envolveram Bolsonaro e Lula nem chegaram perto da carga deletéria de um debate em que esteja presente esse senhor.

Nós outros, que assistimos a esse espetáculo constrangedor, não temos o poder de pôr as coisas no lugar. Aliás, não vejo outro meio de dar um basta a essa descida aos infernos que não seja a proibição da entrada de Marçal nos debates que ainda restam. Só que nós, aqui do outro lado da câmera, estamos de pés e mãos atadas. Não podemos fazer grande coisa. Quem pode tomar essas decisões é quem organiza os confrontos. Alô, canais de tevê e plataformas internet!

Uma vez rompidas as amarras que configuravam debates civilizados, estará criado o precedente. Nas próximas eleições, ninguém vai poder segurar a baixaria que certamente virá. Daí para a frente, vai piorar. Rolando pela escada abaixo, nossos debates perderão o pouco de civilidade que ainda tinham.

A cadeirada

José Horta Manzano

Campanha eleitoral sempre foi, e continua sendo, um picadeiro. Dependendo do espírito do momento, pode ser picadeiro exposto à chuva, transformado em lamaçal. Pode também ser forrado de areia, material escolhido para contrastar com o sangue que aí vai se derramar. Pode ainda ser um tablado revestido de madeira, apto para salamaleques e contradanças elegantes. Esta última opção é menos frequente, convenhamos.

A atual corrida de acesso à cobiçada cadeira de prefeito da cidade de São Paulo tem passado ao largo do velho estilo “salão literário”, onde se trocam ideias e se apresentam propostas para cuidar os problemas da metrópole. Um candidato inesperado conseguiu, sozinho, impor seu tom e seu ritmo à campanha.

Trata-se de um forasteiro, vindo de Goiás. Não é a primeira vez que um candidato de outro estado concorre a esse cargo. Entre outros, o mato-grossense Jânio Quadros, a paraibana Luiza Erundina, o carioca Celso Pitta foram eleitos para o posto de prefeito paulistano. Entre os seis principais nomes da atual campanha, o candidato de nome Marçal é o único não paulista.

Mais que os demais, esse candidato deixa claro que seu maior objetivo não é propriamente assumir o governo da maior cidade do país e melhorar a vida de seus habitantes. Percebe-se que sua intenção é usar seu desempenho nas artes da internet para arrebanhar adeptos e aumentar sua fortuna, já hoje considerável.

Até ontem, estava eu longe de imaginar que viria a comentar fatos da campanha paulistana. Os anos passados longe acabam aumentado a distância física, que já é grande.

Mas hoje, não houve como escapar. Todos os veículos, sem exceção, deram a notícia da cadeirada que um candidato desferiu sobre a cabeça de outro. Em pleno debate da TV Cultura (!), diante de assistentes e câmeras. O picadeiro-lamaçal evoluiu para arena-sangrenta, o que não deixa de ser singular.

Em política, já se tinham visto tiros, tapas, bolos de chantilly, explosões, pedradas, facadas. Cadeirada, que eu me lembre, é a primeira vez no Brasil. Quem disse que o brasileiro não é um povo imaginativo?

Falando sério agora, a cadeirada do Datena no Marçal é bastante diferente da facada que o Bolsonaro levou ou dos tiros que (quase) “neutralizaram” o Trump. No caso da facada e dos tiros, o agressor não tinha relação pessoal nem estreita com o agredido. Foram, portanto, atentados nitidamente políticos.

Já no caso de ontem, a política passou longe. Aquilo foi briga de bar entre bebuns, depois da terceira cerveja. Marçal atiçou pensando em faturar na internet, e Datena reagiu com o fígado. Foi desavença de cunho estritamente pessoal, mais próxima de bafafá de pátio de escola infantil do que de querela política.

O maior castigo que se poderia dar a esses dois energúmenos seria a inabilitação da candidatura, combinada a uma pena de alguns anos de inelegibilidade.

A população, que apenas deseja escolher o ‘menos pior’ dos candidatos para ser seu prefeito, ficaria agradecida se aqueles dois saíssem de cena. O cadeirador e o cadeirado.

Meio mistério resolvido

Cadeira 2José Horta Manzano

Ah, essa gente que dá notícia pela metade… Dias atrás, tomei um susto ‒ que compartilhei com meus distintos leitores ‒ quando fiquei sabendo que a empresa de um dos filhos de nosso guia contava com uma cadeira «de alto couro ecológico», avaliada em 15 mil reais. Um patrimônio, coronel!

Na ocasião, pra evitar que alguém pensasse que eu estava delirando, cheguei a reproduzir a imagem do Estadão online. Aproveitei para deixar no ar a pergunta sobre o que viria a ser uma cadeira «de alto couro ecológico».

Alguns distintos leitores fizeram a fineza de dar opinião. Conversa vai, conversa vem, ficou a impressão de que andávamos em círculo sem matar a charada. Não foi possível chegar a um acordo.

do Estadão, 30 abr 2016

do Estadão, 30 abr 2016

Pois neste sábado, 30 abril, o Estadão volta ao assunto com mais detalhes. Até certo ponto, esclarece parte de nossa dúvida. Como se podia já ter desconfiado, o estagiário que deu a primeira notícia havia interpretado mal o despacho da agência de notícias. Agora, a publicação do balanço patrimonial da firma de Lula Júnior desvenda parte do mistério.

Uma leitura atenta da relação de bens ensina que o significado do ítem ‘cadeira enc alto couro ecológ.’ não foi captado pelo estagiário. Na verdade, não é o couro que é alto, mas o encosto. Ah, agora ficou claro! O fato de o objeto valer 17 salários mínimos continua a ser mero detalhe. O que fica claro é que o espaldar é alto e o couro é ecológico.

Meia dúvida foi aclarada, pronto! Não tem mais essa de ‘alto couro’. Sobra, no entanto, o segundo termo da incógnita: que vem a ser ‘couro ecológico’? Até agora, a melhor interpretação supõe ser couro vindo de vacas alimentadas com capim desnatado. SMJ.

Cadeira 1Adendo ecológico
Nossa cadeira não está desacompanhada, largada num canto do escritório. O balanço patrimonial da firma de senhor Lula Júnior informa que, além da indigitada cadeira, há ainda uma poltrona de espaldar médio e uma poltrona cromada. Ambas de ‘couro ecológico’. Naturalmente. Fica evidente a preocupação do clã com a preservação da saúde do planeta.

Adendo etimológico
O vocabulário restrito de quem deu a notícia não lhe permitiu identificar o que se escondia detrás da abreviatura «esp». Especial? Qual nada! Em assuntos de cadeira, «esp» indica o espaldar, a espalda.

E que vem a ser? É o que chamamos, em linguagem caseira, as costas da cadeira. A raiz *spatula, que se desenvolveu no latim medieval, dava nome à parte do corpo situada no alto das costas, na altura da clavícula e da extremidade superior do úmero. Em miúdos, é o que chamamos espádua ou ombro.

ViolinoO espaldar da cadeira é justamente onde encostamos o ombro. Na mesma família há um parente mais utilizado. É o verbo respaldar e seu irmão, o substantivo respaldo, ambos transmitindo a ideia de dar apoio.

Menos comum mas também parente é o termo spalla, palavra italiana para designar o primeiro violino de uma orquestra. É o músico que respalda os demais, que lhes dá apoio.