As portas do inferno

by Paul Ribera, desenhista

José Horta Manzano

O nome tradicional era ‘mea culpa’, hoje se diz ‘sincericídio’. Tanto faz, o recado é o mesmo. Doutora Gleisi Hoffmann, num raríssimo ‘sincericídio’, bateu sua culpa em público e confessou:


“Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre o que isso causa à população brasileira. É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno, não tínhamos noção do que isso poderia causar”.


Referia-se ao decreto de aprovação das ‘bets’. (Essa é outra que mudou de nome; chamava-se aposta. ‘Bet’, sem dúvida, tem o charme de Las Vegas, enquanto ‘aposta’ lembra o ponto de bicho da esquina.)

Como muita gente, a doutora se horrorizou ao saber da extensão do estrago provocado pela jogatina: uma desgraça nacional, capaz de levar brasileiros ao superendividamento e à inadimplência. De olho no aumento da arrecadação, o legislador não havia previsto que a profusão de sites de aposta provocaria um atropelo comparável à corrida do ouro da Califórnia, que se deu em meados do século 19.

Cá no meu canto, pensei no dilema da liberação das drogas hoje ilícitas. Os que são favoráveis argumentam que, apesar da proibição, qualquer cidadão disposto a comprar maconha vai encontrar o entorpecente a dois passos de casa. Se quiser, pode até pedir entrega. (Taí mais um que mudou; a arcaica ‘entrega’ virou ‘delivery’, palavra que vem com o charme de uma pizza americana. Com direito a ketchup.)

Não tenho ideia formada sobre o assunto. Durante um tempo, cheguei a concordar com a ideia de que, proibidas ou não, as drogas já estão disponíveis há muito tempo. Diante do auê provocado pelo escândalo das ‘bets’, comecei a refletir. Talvez o problema seja mais complicado do que parece.

Drogas estão disponíveis, sim, mas ainda se situam do outro lado da cortina que separa o lícito do ilícito. O cidadão comum percebe que, se certas substâncias estão do outro lado da cortina, por algo será – como dizem os espanhóis – por alguma razão há de ser. Para obter o produto, há que descerrar a cortina e pôr-se do lado interdito. Nem todos ousam.

No entanto, no dia em que venda e consumo de entorpecentes forem liberados, o quadro se transforma. A cortina que separa o lado firme do lado charcoso estará definitivamente recolhida. É permitido prever que, assim como aconteceu com as ‘bets’, as ‘drugs’ provoquem nova corrida ao ouro e acabem transformando o país num imenso parque de drogados.

São conjecturas, é verdade, mas o risco existe. Suas Excelências deverão ser extremamente cuidadosas quando chegar o dia de votar contra ou a favor de um afrouxamento da política nacional de entorpecentes. O assunto pode ter consequências dramáticas e irreversíveis.

Bets

JOGO DO BICHO
by Laerte Coutinho (1951-), desenhista paulista
via Folha de São Paulo

José Horta Manzano

De ontem para hoje, li artigos de analistas que se indignaram ao saber que os beneficiários do Bolsa Família gastam parte do que recebem em apostas online – ou bets, como convém dizer hoje em dia. São bilhões que escorrem do bolso dos pobres para engordar mansões e festas orgiásticas dos milionários que dominam esse mercado.

Segundo apuraram as autoridades, uns 3 bilhões de reais constituem esse peculiar modelo de transferência de renda pelo avesso: em vez de ir de cá pra lá, vem de lá pra cá. “Pra cá” é força de expressão, naturalmente. O distinto leitor e a graciosa leitora é que não lucram nada com isso.

Me incomoda o fato de esses comentaristas mostrarem indignação em público, com ares de quem bota as mãos na cabeça e aponta um escândalo na sociedade. O tom das críticas não tem um pingo de condescendência pelos que se deixam embalar pelas sereias do marketing das bets. Me lembra antigamente, quando se dava uma esmola e se acompanhava de um: “Mas olha lá, rapaz, não é pra beber, hein!”.

Se escândalo há, é permitirem que figuras populares apreciadas pelo povo surjam na tevê conclamando as gentes a fazerem uma fezinha new style.

Não acho justo condenar o infeliz que, além de pobre, é ingênuo a ponto de sucumbir ao apelo dos peritos de marketing que, ao final, conseguem surrupiar-lhe uns trocados com a promessa de um mundo de sonhos. A concessão da Bolsa Família já é um ato de cunho paternalístico; não convém acentuar esse paternalismo ao estipular o que deve e o que não deve ser feito dessa esmola.

Acredito que todo dinheiro que se recebe – que venha do trabalho, da aposentadoria, da invalidez ou do Bolsa Família – pertence exclusivamente ao cidadão que o recebe. Desse modo, dito cidadão é livre de despender seu dinheirinho como bem lhe aprouver. Uma vez que o dinheiro esteja sendo gasto em atividades lícitas, não cabe a ninguém reclamar nem criticar.

Se quiserem cortar esse mal pela raiz, a receita é evidente: basta proibir a jogatina. A Paratodos continuará girando e contemplando os que tiverem sorte ao fazer uma fezinha.

Além disso, essa simpática contravenção, que vem do tempo em que os bichos falavam, nunca levou nenhum jogador à ruína.