Quase-verdades

José Horta Manzano

No Brasil, todos se lembram das irritantes “quase-verdades” do Lula. Na época, pensávamos que, com esse discurso, ele tinha descido ao ponto mais baixo que um presidente pode atingir. Era engano.

Com Bolsonaro, já não temos meias verdades: o capitão mente descarada e compulsivamente. Despudoradamente. E ninguém parece se importar mais com isso. Uns chegam até a aplaudir. Essa indiferença mostra uma complacência perigosa para o futuro das relações sociais entre cidadãos deste país.

Lula e Bolsonaro passarão, mas o tecido social que eles esburacaram permanecerá. Se a mentira já não choca, é sinal de que a confiança desapareceu. Como viver numa sociedade em que todos desconfiam de todos?

Desconfiança dá muito trabalho e consome muita energia. Se esse fator um dia entrar no cálculo do PIB nacional, o resultado será desastroso. Devemos estar abaixo do Afeganistão.

4 pensamentos sobre “Quase-verdades

  1. Prezado José,

    Em algum lugar do seu blogue, você escreveu que está há décadas fora do Brasil e, por isto, está afastado das conversas do dia-a-dia dos brasileiros, mas, também por isto, talvez tenha uma visão mais acurada das nossas mazelas, por vê-las de longe.

    Perdoe-me se o parafraseei mal, mas, na verdade, o que me intriga e me fez ter vontade de lhe escrever é eu mesmo desejar, há não pouco tempo, emigrar. É improvável que o faça, pois escolhi uma profissão que exige profundo conhecimento cultural local e muitas conexões também locais (Direito).

    Além disso, sou um profissional mediano, e, se é difícil para um profissional de TI apenas mediano recolocar-se favoravelmente em mercados de trabalho estrangeiros mais exigentes, é-o ainda mais difícil para um advogado.

    De todo modo, eu tenho para mim que, se eu realizasse este sonho, nunca mais procuraria saber nada sobre o Brasil, as suas mazelas e os seus desmazelos. Manteria contato com a minha família, viria uma vez a cada tantos anos, mas não mais que isto.

    Por isto mesmo, tenho imensa curiosidade em saber o que o leva a ainda ocupar-se do Brasil: masoquismo? Saudades? Saudades masoquistas? Masoquismo saudosista?

    A pergunta foi feita em tom de brincadeira, mas não é retórica: tenho mesmo esta curiosidade.

    Por que não frui a vida local sem perder tempo com o que, até aonde chega a nossa vista, não tem conserto?

    Um abraço do compatriota não expatriado,
    Rodrigo.

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    • Prezado Rodrigo,

      Feliz em vê-lo por aqui! Bem-vindo ao clube!

      Sua pergunta é pertinente. Pra lhe dar uma resposta completa, o melhor seria escrever um livro de memórias. Quem, como eu, já viveu tantas décadas e já viu tanto mundo tem muita história pra contar. As palavras, as frases, os textos que você lê neste blogue são, bem ou mal, fruto desse acúmulo de experiência.

      Talvez a melhor explicação para sua dúvida seja um traço de personalidade que carrego desde sempre: o perfeccionismo. Faço o que posso para que meus textos saiam perfeitos, com começo, meio e fim, ideias conectadas, grafia correta, concordância benfeita, vocábulos bem escolhidos, tempos verbais adequados. Sempre trabalho com dicionário, vocabulário, dicionário de sinônimos, dicionário de concordância verbal – todos abertos.

      Trabalhar assim leva tempo, um tempo que só é permitido aos que escrevem por prazer, como eu, sem vistas a nenhuma compensação financeira.

      A variante brasileira da língua portuguesa é minha língua materna. Poderia, se quisesse, escrever em outras línguas. Mas o esforço teria de ser maior. A idade me permite a preguiça de escolher a ladeira menos íngreme. Eis por que escrevo em português brasileiro. Deixo as demais línguas para correspondência pessoal com amigos e conhecidos que não conhecem nossa língua.

      A língua do blogue condiciona o universo de leitores. Se estivesse escrito em inglês, por exemplo, estaria aberto a leitores de todos os rincões do planeta. Já nossa língua – em especial, nossa variante – é praticada exclusivamente por brasileiros. Numerosos são meus leitores estabelecidos em países onde a diáspora brasileira está mais presente.

      Eu poderia me especializar em notícias da Suíça, da França, da Europa em geral. Só que, se fizesse isso, estaria armando uma dissonância entre o assunto e a língua do texto. É melhor quando um combina com o outro.

      Está aí a razão principal pela qual você vê assuntos brasileiros tratados com prioridade (mas não com exclusividade). Me apaixonam a política nacional francesa, as relações entre países da União Europeia, os confrontos entre os EUA, a China e agora a Rússia. Mas acredito que não se espera de um blogue chamado Brasil de Longe que se especialize em relações internacionais.

      Assim mesmo, tive o cuidado de levantar uma rápida estatística cobrindo meus 20 últimos posts. Eles abordam os seguintes assuntos:

      Brasileirices = 4 posts
      Europeíces = 4 posts
      Vasto mundo = 3 posts
      Textos alheios = 3 posts
      Relações exteriores = 2 posts
      Citações = 2 posts
      Línguas = 1 post
      Abjecto = 1 post

      Para um “Brasil de Longe”, o Brasil não está tão perto assim, não lhe parece?

      Volte sempre!
      Forte abraço.

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      • Prezado José,

        Entendi as suas razões: em síntese, gosta de escrever escorreitamente e ser-lhe-ia mais trabalhoso fazê-lo numa língua que não fosse a sua materna, cujo alcance conforma o seu público-alvo e, por conseguinte, os assuntos sobre os quais escreve.

        Mas, talvez por estar há várias décadas fora, não sinta tão pungentemente o mal-estar difuso por aqui, a atmosfera carregada, em que se respira mal e de que não se sentiriam saudades.

        É por isso que, suponho eu, não me interessaria manter contato algum com os fatos e boatos relacionados com o Brasil, se eu o deixasse, embora suponha também que, à distância, geográfica e temporal, eu conseguisse manter uma relação mais desapaixonada, como quem analisa um objeto qualquer sobre o qual se queira escrever.

        Um abraço,
        Rodrigo.

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        • Saudades sinto, prezado Rodrigo, saudades sinto. Mas de algo que você, certamente bem mais jovem que eu, não conheceu.

          Sinto saudades de um Brasil em que se podia andar na rua sozinho à noite; em que a porta de casa nem chave tinha, que não fazia falta; em que prédio não tinha porteiro; em que ninguém tinha medo nem vergonha de andar a pé, que carro era artigo raro.

          Sinto saudades de um Brasil em que um parente, vindo de longe e sem avisar, batia à porta carregando sua malinha pra passar uns dias. Ia entrando e ficava.

          Sinto saudades de um Brasil em que a gente sonhava com um futuro risonho, de progresso e felicidade para todos, um futuro que a gente tinha certeza de que estava logo ali, na virada da esquina.

          Em uma palavra: sinto saudades do Brasil gentil que eu conheci. Mas que foi murchando, desmilinguindo, se esvaindo, até sumir de vez.

          Esse mal-estar difuso que você menciona, eu já senti nos anos 1990, quando fiz minhas últimas viagens de férias à terra natal. A cada estada no Brasil, meu sentimento de insegurança foi ficando tão sufocante, que decidi não mais passar férias aí. Eu já não reconhecia a terra que havia deixado um dia. Entendi que o país onde nasci e cresci estava morto e enterrado.

          Mas sobram as saudades de tudo aquilo que deixou de existir na vida real, mas sobrevive na minha memória. São essas lembranças boas que me animam a escrever.

          Forte abraço.

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