Peruada

Correio Paulistano, 29 março 1935

José Horta Manzano

Até os anos 1930, peruada estava para os perus como galinhada estava para as galinhas: designava um bando de perus, nada mais. É um tanto controversa a razão pela qual os estudantes da Faculdade de Direito da USP dão esse nome aos desfiles e às brincadeiras que organizam uma vez por ano.

Há quem diga que, certa feita, os rapazes furtaram perus de um parque da cidade e os transformaram em alimento digno de saciar a fome de muitas bocas. Outros dizem que não é bem assim e que a tradição já vem dos tempos do imperador.

As primeiras menções de peruada como nome dos festejos estudantis aparecem na imprensa dos anos 1930. No Correio Paulistano de 29 de março de 1935, o comitê organizador publica um comunicado com as regras do trote – chamado ‘peruada’. Avisam que o couro cabeludo de todo calouro será rapado. Acrescentam que ainda será cobrada de todos uma “modesta” quantia de 20$000 (vinte milréis, valor considerável para a época, equivalente ao preço de venda de 100 jornais).

Numa demonstração de que não é de hoje que as classes abastadas gozam de privilégios inalcançáveis para os mais modestos, o comitê informa que, mediante pagamento de 200$000 (duzentos milréis, soma astronômica, correspondente ao preço de 1.000 jornais), o calouro será poupado e poderá conservar as melenas.

É muito triste constatar que, passados noventa anos, o país continua empacado. Continuamos vivendo numa sociedade dividida entre os que têm e os que não têm.

Não é chocante que haja desnível financeiro entre cidadãos. O que choca é o exagero. A enorme riqueza não assusta; o que horroriza é a extrema pobreza. Não me parece escandaloso que um indivíduo possua bilhões; já a existência de cidadãos que passam fome é a demonstração de que a sociedade é disfuncional.

Em nosso país, há os que não têm teto, há os que passam fome, há os que têm de trabalhar para sustentar os próprios estudos, há os que são obrigados a ter mais de um emprego para sobreviver, há famílias vivendo debaixo de viadutos, há iletrados e analfabetos.

Enquanto isso, um presidente anda de jet ski e um ex-presidente dá festa de casamento para 200 convidados. Ambos são candidatos nas próximas eleições. São muito bons na hora de insultar-se mutuamente, mas quando vem a hora de apresentar um plano consistente para fazer o país avançar, o que se vê é o nada e o que se ouve é o silêncio ensurdecedor.

Algo enguiçou no país, e ninguém parece muito preocupado em desenguiçar.

Discurso para a militância

José Horta Manzano

Pronto, o ciclo se fechou. Ou se abriu, fica ao gosto do freguês. Mister Trump subiu ao trono que já foi de George Washington, de Abraham Lincoln, de Richard Nixon e de George Bush.

O ritual aperfeiçoado ao longo dos anos foi seguido à risca. Numa época como a nossa, em que, cada vez mais, descerebrados se devotam a urdir atentados contra tudo e contra todos, forças policiais foram compelidas a tomar excepcionais medidas de segurança. A plateia teve de enfrentar bloqueios, filtros, verificações.

A Folha de São Paulo qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

A Folha de São Paulo qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Felizmente, excetuada alguma baderna orquestrada por bléquiblóquis locais, nenhuma ocorrência grave veio perturbar a passação de poder. A sensação ficou por conta da esperada cerimônia de tomada de posse. Centenas de equipes de reportagem do mundo inteiro se tinham abalado para não perder uma migalha do grande momento.

E que se viu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Foi manchete em todo o planeta a indumentária da nova primeira-dama, dado de capital importância para o futuro da humanidade. Graças à argúcia de repórteres a quem nada escapa, sabemos que Mrs. Trump estava vestida de azul-bebê, tom afeiçoado por Jacqueline Kennedy. Quem poderia ir dormir sem esse precioso relato?

trump-1E que se ouviu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Quem foi ouvir Trump, saiu saciado: ouviu Trump. O novo presidente gastou vinte minutos repetindo exatamente os mesmos slogans que já havia martelado na campanha, todos do tipo «me engana, que eu gosto».

Fiquei sabendo que gente conhecida no mundo do espetáculo boicotou a cerimônia. Percebi que, na falta de um grande nome, tiveram de dar a uma adolescente o encargo de entoar o hino nacional. Tive notícia de que uma ou duas dezenas de parlamentares descontentes recusaram-se a comparecer ‒ atitude que, francamente, não combina com a democracia americana, justamente por acentuar o antagonismo entre «nós & eles», tão deletério e tão nosso conhecido. Ainda que muitos não tenham apreciado o resultado da eleição, esta não é a melhor hora para acentuar divisões no país.

O Estadão qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

O Estadão qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Li análises alarmistas. Até gente fina, articulistas que costumo respeitar se deixaram impressionar pelo que disse o novel presidente. Bobagem. Vamos repor as coisas no contexto apropriado, minha gente. O pronunciamento de Mr. Trump foi o discurso final de campanha, o agradecimento aos que nele votaram. O homem não podia dizer outra coisa senão o que já vinha dizendo havia meses. Nem todos os analistas entenderam, mas a fala era dirigida aos que o elegeram, um discurso para uso interno sem nenhuma intenção de impressionar o mundo.

Vamos, camaradas! O diabo não é tão feio assim. Novato em política, Mr. Trump entra na arena galopando e encabritando-se como potro novo. O dia a dia vai-lhe mostrar que o mundo não funciona exatamente como ele imagina. O presidente vai deixar de galopar. Vai maneirar na andadura e acabará trotando como fizeram todos os seus predecessores.