Myrthes Suplicy Vieira (*)
Aleluia, você está de volta! Que bom recebê-lo de novo por estas paragens, frio. Você não faz a mínima ideia do quanto estávamos saudosos. Que bom também que seu retorno tenha se feito acompanhar por uma chuvinha benfazeja. Até os jovens que não o conheceram quando São Paulo ainda tinha um clima civilizadamente ameno e era chamado de terra da garoa hoje o saúdam.
Espero, frio, que você tenha vindo para ficar de vez por aqui. Que, pelo menos até o fim de maio, você resista bravamente às possíveis massas de ar quente vindas da Amazônia, aos eventuais bloqueios atmosféricos causados por zonas de baixa pressão. Como você se demorou pelo caminho, envolvido quiçá pela beleza das paisagens e pela alegria no rosto das pessoas, talvez não saiba o quanto nossa terra ultimamente está precisada de um pouco de refrigério.
Sabe, não eram apenas os dias que estavam quentes. Os espíritos também estavam inflamados, nossos miolos não encontravam refrigeração, pulando de uma notícia bombástica para outra, sem intervalo para recuperar o fôlego. As cores do cenário à nossa volta eram fortes demais, o contraste de tons se exacerbava a cada minuto. Estávamos precisando desesperadamente de um pouco de sombra, de silêncio, de contrição. Sentíamos a necessidade de que o que está fora se apaziguasse um pouco para que o que está dentro se reorganizasse em torno do caminho da serenidade.
É engraçado constatar isso, mas só você, frio, consegue nos encaixar com precisão na moldura da condição humana. Você nos inspira ao aconchego, ao acolhimento, à aproximação fraterna. Quando está calor, somos animais selvagens que só conhecem e reagem às próprias sensações: ao suor escorrendo pelas têmporas, pelo pescoço e descendo num arrepio pelas costas nos alertando que a ação foi exagerada; ao coração batendo apressado ansiando por mais emoções fortes; à garganta seca implorando por alívio imediato; aos reclamos do estômago, fígado e intestinos sobrecarregados pelo esforço de dar vazão à adrenalina acumulada; aos rins se queixando da missão impossível de eliminar de uma só vez tantos desvarios.
Quando você chega, frio, nossos órgãos de sentido aliam-se a nossos sentimentos e passam a comandar o espetáculo: nossos olhos que se abrem mais para contemplar com ternura os contornos da realidade emocional de outras pessoas; nosso coração que se aquieta para ouvir melhor o pulsar do coração do outro; nossas mãos que se comprazem na tarefa de identificar as diferentes texturas que compõem o substrato psíquico de cada criatura.
Paradoxalmente, começamos a nos comportar quase como ninhada de animais que só sabem sobreviver empilhando-se e dormitando uns sobre os outros para desfrutar o calor do contato de corpos. Já não nos bastamos mais. Recuperamos a memória dos tempos ancestrais da nossa vida em cavernas e reavivamos o fogo da esperança de sobreviver à solidão de tudo o que é propriamente humano.
Já disse alguém que romântico é aquele que projeta nas mudanças climáticas as próprias emoções. Se o dia está nublado, sua mente divaga em meio a sombras. Se chove, sente-se liquefazer por dentro. Se um raio de sol desponta, seu peito enche-se de esperança. Pode ser verdade, mas acho que o inverso também é verdadeiro. Nos dias quentes, muitas vezes me sinto como quem assiste da plateia a um desfile de carnaval: aquele rebuliço todo me parece exagerado; a alegria, falsa; a confraternização, forçada. O descompasso com o desejo de contenção que invade minha alma acaba por me cansar me deprime.
Tudo a seu tempo, é claro. Os gregos já diziam que só aprendemos com os opostos. O sentido de pertencimento, de encaixe, precisa vir aos poucos, transitar suavemente em sintonia com o findar de um ciclo e a abertura para um novo. Depois do verão, o outono. Depois do inverno, a primavera. Depois da exposição, recolhimento. Depois da hibernação, o despertar da fome de contato.
Por isso, frio, demore-se pelo tempo que for possível. Se seu ciclo também demorar a se fechar, o desgaste orgânico será novamente inevitável. E nós que pertencemos organicamente ao calor dos trópicos – para meu pesar pessoal, devo admitir – podemos oferecer mais uma vez resistência ao prolongamento de sua permanência.
Enquanto esse dia não chega, meu querido friozinho outonal, quero uma vez mais lhe dizer que abençoo a sua chegada. Por seu lado, com o corpo e a mente ainda abrasados pela vontade de colher os frutos de nosso esforço para implementar dias melhores para todos, rezo para você não se levar muito a sério nem se transformar, sem querer, no inverno da nossa desesperança.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.