Desvio de função

José Horta Manzano

Muita gente acha que ser indicado, nomeado ou mesmo eleito para um alto cargo público é um mimo, nada mais. Os que assim pensam não se dão conta de que, em princípio, altos cargos não foram feitos para serem distribuídos de presente aos amigos. Para que a máquina pública funcione azeitada, é preciso que todos esses postos sejam ocupados por profissionais que entendem do riscado e que estão dispostos a arregaçar as mangas.

Ao término de seu mandato de vice-presidente, o general Hamilton Mourão – o enjeitado do bolsonarismo – surfou na crista da onda do movimento da extrema direita, candidatou-se ao Senado pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi eleito. Diga-se que Sua Excelência jamais tinha exercido cargo público na vida. Foi militar de carreira.

Não ficou claro como o general imaginava a vida de senador, como planejava exercer seu novo cargo. Pelo que declarou dois dias atrás a uma rádio gaúcha, ele devia estar imaginando que seria mais ou menos como vida de militar de alta patente aposentado, um funcionário que cumpre tabela, comparece no plenário, vota quando há matéria, sai pra almoçar, volta mais tarde (ou não). E assim, um dia após o outro, até chegar o dia do ordenado, que vem obeso como ovo de Páscoa, recheado de penduricalhos.

Numa acusação incômoda, os entrevistadores cobraram do general o fato de não ter se abalado de Brasília para o Rio Grande durante os dias mais trágicos das enchentes. Com ar surpreso, o senador alegou que seu lugar não era de botas e pé na água salvando gente, que ele é um homem de 70 anos, que qualquer viagem sua ao RS teria sido “desvio de função”. Disse isso sem piscar e sem sorrir, sinal de estar convencido de que a explicação era justa e suficiente.

Já falei disto no passado, mas não custa repetir. Todos os candidatos a cargos públicos eletivos – do presidente da República ao vereador – deveriam, antes de se candidatarem, ser aprovados num exame tipo vestibular, feito para aferir seus conhecimentos gerais e, mais especificamente, para ver se estão a par das particularidades do cargo que pleiteiam. Se levassem bomba no exame, estariam impedidos de registrar candidatura. Ficariam de segunda época, com nova (e última) chance um mês depois.

Com seu peculiar entendimento do cargo de senador, o general não teria passado no exame. Os eleitos pelas urnas não caíram de uma nuvem pela graça do arcanjo Gabriel, mas são representantes do povo que os elegeu. E a esse povo devem atenção e respeito. Ainda que seja só de fachada, essa cortesia tem de ser a marca maior de qualquer político. Saborear buchada de bode, provar cachaça às 10h da manhã e degustar café requentado são pedregulhos que calçam o caminho de todo político. Não seria honesto pedir voto e, na hora do vamos ver, vir com desculpa de “idade avançada”. Não combina.

Falando em idade, me vem à mente que os ministros do STF, mais alto cargo da magistratura nacional, têm prazo de validade. A partir de 75 anos, são considerados “impróprios para aplicar a lei” e então descartados. Para outros altos cargos, a lei costuma fixar uma idade mínima mas deixa em aberto a idade máxima. Assim, um candidato à Presidência, à vice-Presidência ou ao Senado tem de ter 35 anos completos. Não pode ter menos, mas pode ter, digamos, 80, 90, 100 anos. Parece normal? O senador Hamilton Mourão acaba de dar a resposta.

Ele, que atualmente ocupa o cargo, considera que, aos 70 anos, está velho demais para assumir a plenitude de suas funções. E pensar que o mandato dele só terminará quando ele já estiver a caminho dos 78 anos! Em que estado estará ele? Bom nem pensar.

Melhor mesmo é começar a discutir uma data de validade para os cargos eletivos, não só para ministros do Supremo. Setenta anos? Setenta e cinco? Não cabe a mim decidir. Mas uma coisa é certa: se o avanço da idade não afeta de modo direto as faculdades mentais, ele entrava certas faculdades físicas que farão falta no exercício do mandato.

Que tal começar a discutir o assunto? Antes que nossa democracia se torne gerontocracia.

Solastalgia

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 24 maio 2024

As águas vão baixando no Rio Grande. O que se vai descobrindo agora é um espectro de devastação, panorama de infinita tristeza. O trabalho de uma vida inteira, a pequena propriedade rural que custou anos de sacrifício, a semeadura feita à custa de dívida bancária contraída com tanta dificuldade – tudo destruído.

Nós outros, que assistimos a essa tragédia pela televisão, não fazemos a menor ideia do que seja passar por um sufoco desse calibre. O desastre assolou uma área de tamanho comparável a uma Grã-Bretanha, quase uma Itália inteira! É uma tragédia superlativa.

O Instituto Quaest publicou, no momento em que as enchentes atingiam seu pico, os resultados de uma pesquisa nacional. Tanto gente de bom senso como terraplanistas concordaram num ponto principal: para 99% dos entrevistados, a calamidade que atingiu o Rio Grande do Sul tem ligação com as mudanças climáticas que perturbam a vida no planeta. Unanimidade assim é rara de se ver.

Enquanto isso, em Brasília, se desenrolam fatos dignos de um outro planeta. Estão atualmente tramitando, no Senado ou na Câmara, 25 projetos de lei e 3 propostas de alteração da Constituição visando a mexer na legislação de preservação florestal, a afrouxar regras de licenciamento ambiental e até a anistiar grileiros, desmatadores e outros neandertais. Interesses pessoais néscios e mesquinhos estão por trás desses projetos. Seus autores vivem divorciados de seus eleitores e da realidade global. Esperemos que as enchentes do Rio Grande sacudam o berço esplêndido desses eleitos deslumbrados e os despertem para as desgraças que entraram na pauta nacional.

Boa parte da população de países mais atentos já se deu conta, faz anos, de que toda a humanidade navega num mesmo barco e de que, se cada um não fizer sua parte, o planeta periga tornar-se inabitável antes do que se imagina. Quando digo “cada um” é cada um mesmo, na medida de suas possibilidades. Reutilizar um saco de papel, por exemplo, é o tipo de gesto fácil e simples mas que, multiplicado por milhões de cidadãos, tem seu peso.

Acredito que, em matéria de participação individual no esforço geral de fazer o que se pode para lutar contra aquecimento planetário e catástrofes climáticas, o cataclismo do Rio Grande seja um marco histórico: assinalará um antes e um depois na tomada de consciência do brasileiro sobre o processo de rápida deterioração do clima global.

As enchentes do Sul não são um fenômeno isolado – afirmação cujo bom senso já foi aferido pela pesquisa Quaest. Estão intimamente relacionadas ao desmate na Amazônia e no Cerrado, à reorientação da circulação dos ventos e da umidade. É uma teia complexa de eventos que se equilibram e se complementam. Uma alteração num dos componentes perturba o funcionamento do todo.

Neste ‘day after’ das enchentes do Rio Grande do Sul, não se trata mais do derretimento de longínquas geleiras ou do desaparecimento de ilhotas num oceano qualquer. Hoje sabemos o que significa ver um naco da própria terra natal desaparecer sob uma água barrenta como enxágue de olaria e estagnante como criadouro de mosquito. A partir deste maio de 2024, os brasileiros contam com um exemplo real, doméstico, de carne e osso, com nome e endereço. Não dá mais pra fazer que não viu.

A saúde mental da população, especialmente dos mais jovens, estará cada vez mais comprometida. De fato, são os que entram agora na vida adulta que mais se preocupam com o horizonte sombrio, sem luz, sem sol e sem esperança. É a eles que estamos legando esse mundo. Vamos pelo menos corrigir um pouco do que fizemos errado estas últimas décadas.

Solastalgia, título deste escrito, é termo cunhado em 2005 pelo filósofo australiano Glenn Albrecht. Descreve o estado de estresse emocional causado pelas alterações do meio ambiente, especialmente a destruição de ecossistemas e da biodiversidade. E, consequência inevitável, o aquecimento global.

Energias renováveis, transição energética, ecoansiedade, angústia climática, luto ecológico, ponto de não retorno – são expressões que vão continuar se avolumando em nosso futuro próximo. Se o sofrimento causado pela calamidade das enchentes do Rio Grande puder nos abrir o olho (e a mente) para essa inescapável realidade, um bom passo terá sido dado.

Mais municípios?

José Horta Manzano

É suficientemente raro. Quando acontece, é ocasião de soltar rojão. A presidente acertou uma! Alegremo-nos, irmãos!

Em fala proferida neste 8 de novembro, em Rio Grande (RS), dona Dilma deixou claras suas reticências quanto à criação de municípios ― por desmembramento de municípios maiores, entende-se. Asseverou que a multiplicação de municípios diminuirá o tamanho da fatia de bolo que caberá a cada um deles, velhos ou novos. É uma evidência, mas nunca é demais repetir.

Mais uma vez, o Brasil caminha na contramão da modernidade. Na Europa, especialmente em países que, por razões históricas, contam com grande número de municípios, a tendência é justamente de fusioná-los. Menos de olho nas vantagens eleitorais e mais interessados no bem-estar de seus concidadãos, os políticos daqui já se deram conta de que, quando dois municípios se juntam, a economia é real. Acaba-se com a duplicidade de prefeituras, de câmaras, de vereadores, de serviços diversos. É considerável.

A França é o país europeu com maior número de municípios: eram 36’683 em 1° jan° 2012. Já são 1500 a menos que em 1959. A redução não é frenética, mas a tendência continua, ao contrário do Brasil. Por que será?

Esperemos que dona Dilma oponha seu veto a esse projeto de lei ― já displicentemente aprovado na Câmara e no Senado ― que facilita a criação de 180 novos municípios. Só discursar não basta: ela precisa ter coragem de ir até o fim de seu raciocínio. Que engavete essa lei bastarda e não a sancione. Basta de ceder a insaciáveis morcegos, sempre os mesmos, que vivem de sugar os recursos do povo em proveito próprio.