Janer Cristaldo (*)
Ano passado, me escrevia um leitor: “às vezes dá vontade de ir embora deste país. Afinal, Janer, se você pôde viver em Paris, Madri e Estocolmo, por que decidiu voltar para esta terra de apedeutas, comunistas, fanáticos, et caterva?”
Expus minhas razões. Saí para não voltar. Não fui expulso do Brasil. Saí e voltei pela porta da frente. O que me irritava era aquela imagem de país do carnaval e do futebol. Em Ponche Verde, narro, em tom de ficção, minha resposta ao policial que me ofereceu asilo na Suécia:
― Ah! Então o senhor quer asilo político?
― Oh não, jag ska tacka nej(1), como pode muito bem ver Herr Konstapel(2), nesse formulário peço apenas uma permissão de estada, agradeço a generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo do país todo, fujo exatamente daquilo que para vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo, fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria, da indigência mental e da corrupção, quero tirar umas férias do subdesenvolvimento, viver em um território onde o homem sofre os problemas da condição humana e não os da condição animal. Muito antes de os militares tomarem o poder, min Herr(3), eu já não suportava os civis.
― Veja o senhor, meu povo morre de fome e todos sorriem felizes e desdentados quando um time de futebol bate outro, se bem que a coisa não é assim tão tétrica como a pinto, veja bem, lá também existe luxo, requinte, hotéis que talvez fizessem inveja aos de vosso rico país, mansões de sonho isoladas da miséria que as envolve por arames farpados, guardas e cães, há cronistas sociais que acendem charutos com notas de cem dólares e homens catando no lixo restos de podridão para comer. E não fujo só do Brasil, Sr. Policial Superdesenvolvido, fujo também de minha condição de jornalista, pertenço a uma classe que se pretende de esquerda e entorpece multidões com doses cavalares de… futebol.
― Em minha cidade ― não sei se o chateio com estes dados ― há questão de uma década um sociólogo calculou em trinta mil o número de prostitutas, só não sei se havia repertoriado em suas estatísticas meus colegas de ofício. Penso até mesmo que a profissional de calçada tem mais dignidade, ela aluga por instantes o corpo, mantendo o espírito livre, enquanto nós vendemos corpo, alma e opiniões, o mais livre dos jornalistas não é livre coisa alguma, o jornal pertence ao chefe, nossos pensamentos também, os mais nobres ele os joga na cesta de lixo, publica os lugares comuns humanísticos na página dos editoriais e posa de liberal. Sim, sei que isto não vem caso neste pedido de permissão de estada, bosätningstillstand como dizem os senhores, é que para expor minhas razões tenho de dar-lhe uma idéia do Brasil, pretensão aliás inviável, já que nem eu entendo aquele país.
Acabei voltando, apesar do carnaval, copa e miséria. Em primeiro lugar, havia uma mulher que me chamava poderosamente no Brasil. Ela valia mais, para mim, que a Europa toda. Há quem troque uma pessoa querida por um país. Eu não troco.
Em segundo, os suecos me queriam para trabalho de imigrante, o que meu orgulho me impedia. Não lavo pratos nem em minha casa, não iria lavar pratos para o Primeiro Mundo. Disputei uma vaga como jornalista na Sveriges Radio. Tinha dois cursos universitários, dois anos de trabalho em jornal. A vaga é minha, pensei.
Não era. Eu não era de esquerda. Se não conseguia trabalhar em profissão decente, melhor voltar. Considero que ganhar pouco no Brasil em um trabalho compatível com as próprias capacidades é bem melhor ― e mais digno ― do que fazer tarefa de imigrante no estrangeiro, mesmo ganhando mais. Há quem prefira ganhar mais. Não é meu caso.
Em terceiro, em país estrangeiro, você será sempre um cidadão de segunda categoria, ainda que viva melhor que no Brasil. Sempre que criticar o país ― e críticas, você sempre as terá ― poderá ouvir de bate-pronto: por que então você não volta para seu país?
Havia uma outra razão, e das mais estranhas. Era como se eu necessitasse, naquele país habitado por deusas, de um pouco de feiura e imperfeição. Saudades de uma negra gorda carregando um balaio na cabeça. Nem sempre são inteligíveis os ímpetos que acometem um ser humano.
(*) Janer Cristaldo Ferreira Moreira (1947-), escritor, romancista, ensaísta e tradutor gaúcho. Edita o site cristaldo.blogspot.com
Dicas minhas:
(1) Jag ska tacka nej = Não, obrigado
(2) Herr Konstapel = Senhor Agente (de polícia)
(3) Min Herr = Meu Senhor
