A tentativa de colmatar uma brecha

José Horta Manzano

Em artigo de dois dias atrás, comentei uma fala de doutor Luís Roberto Barroso, ministro do STF, que detectou um «pacto oligárquico entre agentes públicos e privados para saquear os cofres públicos do Brasil».

Não só concordei com a afirmação de doutor Barroso como também expus, em algumas pinceladas, minha própria visão da oligarquia que dirige nossos destinos. Na minha avaliação, nossa elite dirigente é verdadeira nomenklatura(*), que não faria papelão se comparada com a que comandava o destino da extinta União Soviética.

A sessão de ontem do STF, em que se julgou o pedido de habeas corpus do cidadão Lula da Silva, deu mais uma prova da existência e da solidez dessa classe superior de cidadãos. A meu conhecimento, nenhum comentarista político se achegou ao detalhe para o qual vou apontar.

Não sei se o distinto leitor se terá dado conta, mas os ministros que votaram contra a concessão de HC ao Lula são justamente os que chegaram ao STF mais recentemente. De fato, os seis magistrados (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia) são os últimos a terem sido nomeados.

Para ser exato, confirmo que, entre eles, se insere doutor Dias Toffoli, um estranho no ninho. Reprovado duas vezes em exame para a carreira de juiz e ex-advogado do PT, entrou ‘de penetra’ no seio das sumidades. Quem lhe abriu as portas foi justamente Lula da Silva, então presidente da República. Na época, a nomeação deixou um desagradável sabor de que o novo ministro era «elemento infiltrado». Isso explica por que não votou como os demais colegas recém-chegados.

by Yannick “Ygreck” Lemay, desenhista canadense

Os ministros mais antigos foram favoráveis ao livramento do acusado. Todos eles. Esse voto reforça a tese de uma nomenklatura(*) ameaçada que saca todas as armas para se defender. O cordão de isolamento que tentaram formar em torno do Lula não emana de fortuito sentimento humanitário para com um velhinho torturado. O problema maior é que, derrubado o demiurgo, uma brecha se abriria na corporação ‒ terrível ameaça para o clube! Caído ele, outros podem cair!

O Lula sempre funcionou como escudo. Primeiro, para o partido que ajudou a fundar. Em seguida, quando já na presidência, para a elite corrupta que se nutre dos dinheiros públicos. Enquanto resistisse de pé, ele era a garantia de que nenhum mal atingiria os demais sócios do grupo. Muita gente fina se aproveitou dos anos de domínio lulopetista para engordar o patrimônio.

Quando as artes do ex-metalúrgico o levaram a ser acusado, processado e condenado, a nomenklatura(*) se eriçou. Era imperativo deter o curso dos acontecimentos. Se ele fosse efetivamente preso, a solidez da corporação estaria em perigo.

O voto individual de cada ministro no julgamento de ontem deu resultado apertado mas mostrou um lado positivo: os últimos que chegaram ainda não foram contaminados pelos miasmas da corporação.

O Brasil teve muita sorte. Se a decisão de livrar ou não o demiurgo tivesse sido postergada de alguns anos, talvez o contágio já se tivesse alastrado e atingido a maioria dos ministros. Escapamos de boa.

(*) Nota para os mais jovens
A palavra nomenklatura era muito usada no tempo em que existia a URSS ‒ União Soviética. Designava a classe superior, a elite do país. Era um seleto clube de cidadãos mais iguais que os outros. Tinham acesso a bens e favores que eram negados aos demais. Tinham permissão para viajar ao estrangeiro e para fazer compras em lojas que ofereciam produtos ocidentais. Podiam possuir automóvel e desfrutar de casa de campo. E tinham direito a muitos favores mais, tudo por conta da princesa.

Em alguns aspectos, a elite que transita em certos corredores de Brasília guarda forte semelhança com a nomenklatura soviética.

Não vão caber

José Horta Manzano

Imagine o distinto leitor uma procissão de mil e quinhentos magistrados, uns de terno e gravata, outros de toga, todos transpondo o portal do STF na véspera do «dia D do Lula». É multidão pra nenhum sindicalista botar defeito, né não?

Chamada do Estadão

Ok, Ok, eu sei que dá pra entender. Mas não custava fazer um esforçozinho pra encontrar verbo mais adequado e, em seguida, ajustar a frase.

Para dar o recado com precisão e elegância, vários verbos estão à disposição. Entre eles:

apelar,
recorrer,
suplicar,
pedir,
solicitar,
invocar,
valer-se,
rogar,
clamar,
requerer,
implorar,
pleitear,
requestar,
reivindicar,
exortar.

A lista não é exaustiva.

Nuremberg

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° ago 2015

Em 1961, o já maduro e magistral ator Spencer Tracy protagonizou o filme Julgamento em Nuremberg. Somente quinze anos haviam decorrido desde o fim da guerra, e a lembrança do horror e das atrocidades ainda estava presente em todos os espíritos. Além de acentuar a tensão, as imagens em preto e branco, paradoxalmente, conferem ao drama cores vigorosas. Nuremberg 2A obra cinematográfica retrata um dos numerosos processos penais que Nuremberg sediou entre 1946 e 1949, cada um deles organizado para julgar uma categoria de incriminados.

Daquela feita, os réus eram magistrados alemães que, desdenhando todo senso de justiça e atendo-se crua e comodamente ao ordenamento jurídico nazista, haviam condenado – amiúde à pena capital – gente reconhecidamente inocente. Por conveniência e por poltronaria, haviam-se vergado ao catecismo oficial, iníquo e distorcido, desonrando assim a nobre função para a qual haviam sido formados.

Todos os acusados acabaram sentenciados à pena de prisão perpétua. A cena final traz um diálogo entre o presidente do tribunal – encarnado justamente por Spencer Tracy – e um dos juízes condenados. Em meio minuto, pronunciam frases lapidares, daquelas que valem pelo filme inteiro.

O condenado não pede absolvimento, mas implora ao presidente que procure ao menos compreender suas motivações. Numa tentativa de descarregar a consciência, alega jamais ter imaginado que a incriminação de um inocente aqui, outro ali pudesse se multiplicar e fazer que a coisa «chegasse ao ponto a que chegou».

A réplica do protagonista é fulminante: «Herr Janning, a coisa “chegou ao ponto a que chegou” desde a primeira vez em que o senhor condenou à morte um homem sabidamente inocente.» Pano rápido e pausa pra reflexão.

Spencer Tracy (1900-1967), ator americano

Spencer Tracy (1900-1967), ator americano

A conclusão é universal. Cristalina, decorre de trivial bom senso: juiz ímprobo é juiz ímprobo desde o primeiro julgamento desonesto. Por analogia, criminoso é criminoso desde a primeira transgressão. Assassino, que tenha matado um ou dez, assassino será desde o primeiro homicídio. Ladrão, que tenha afanado um real ou um milhão – nestes tempos de inflação, mais vale dizer um bilhão –, ladrão será desde o primeiro roubo. Ponto e basta.

No Brasil, de uns tempos para cá, a Justiça parece ter despertado de letargia secular. Coisas nunca dantes vistas vêm-se sucedendo num crescendo alucinante. Parlamentares de alta estirpe e empresários-mores são acusados, indiciados, processados. Alguns são até despachados à prisão. Um espanto! O povo hesita entre assombro e júbilo.

Escorados na doutrina que garante terem sido ladrões todos os mandachuvas deste País desde os tempos de Tomé de Souza, os acusados insistem em minimizar malfeitos cometidos. Botam fé na condescendência com que o povo costuma brindar os poderosos.

Mas o próprio termo «malfeito», tão utilizado estes últimos anos, é um despropósito. Nossa língua é vasta e generosa – há que dar a cada coisa o nome que a coisa tem. Contravenção é contravenção, delito é delito, crime é crime. Indo mais longe, cada crime tem nome específico. «Malfeito», genérico demais, não deve ser usado como palavra-ônibus.

Nuremberg 3Até o termo corrupção, de tanto ser rebatido, está se desgastando e perdendo substância. Assalto ao erário não é corrupção, é assalto ao erário. Rapina na Petrobrás não é corrupção, é rapina na Petrobrás. Contrato superfaturado de companhia estatal não é corrupção, é peculato. Outros eufemismos estão em voga e vêm sendo bovinamente repercutidos por espíritos pouco críticos. Quem forja dossiê falso não é aloprado, é caluniador. Quem falsifica contas públicas não dá pedaladas, comete estelionato e prevaricação.

Numa referência canhestra a fatos dos quais tem apenas conhecimento de ouvir falar, o Lula comparou, dia destes, a «elite» brasileira aos ‘nazistas que criminalizavam o povo judeu’. Rematado disparate, é conversa pra dar nó nos miolos. Como tem feito ultimamente, nosso declinante mandatário deitou essa inacreditável falação diante de plateia amestrada e previamente convicta. É verborragia a descartar sem sequer desempacotar.

Petrobras 3Em vez de martelar essa tal elite, assombração intangível que tanto parece incomodá-lo, nosso antigo presidente deveria mandar passar, em sessão privada, o Julgamento em Nuremberg. Que escolha a mais confortável de suas residências e convide os companheiros mais chegados para apreciar. Importante: que prestem todos especial atenção ao diálogo final. Sem muito esforço, entenderão que tanto é ladrão o que vai à vinha quanto o que fica à porta.