Língua complicada

José Horta Manzano

Você sabia?

Por razões históricas, a representação gráfica dos diferentes falares humanos não é uniforme. Há línguas que se valem de ideogramas, como o chinês. O japonês usa um sistema complexo, com silabário e ideogramas. (Silabário é um sistema de escrita com um sinal gráfico para cada sílaba.)

A maioria das línguas escritas utilizam um alfabeto. Há dezenas deles. Em alguns casos, o alfabeto reflete os sons e as nuances da língua para a qual foi especialmente criado. Não é nosso caso.

Nossa língua herdou um alfabeto concebido para outra língua. Os escribas medievais foram obrigados a inventar letras, sinais e combinações para representar sons que não existiam no latim e para os quais não havia letras específicas.

Essa é a razão pela qual nossa escrita nem sempre bate com a fala. Escrevemos de um jeito e lemos de outro. A mesma letra pode ter mais de um som. Ao contrário, um único som pode ser representado de maneiras diferentes.

No português atual, uma única letra pode indicar até cinco(!) pronúncias diferentes. A letra ‘x’ é o exemplo maior. Soará como ‘ch’ em enxurrada, como ‘z’ em exame, como ‘s’ em excluir, como ‘ks’ em fixo. E será muda em excelente.

Por outro lado, o som ‘ch’ pode ser representado de três diferentes maneiras. Em acho, é indicado por ‘ch’. Em eixo, por ‘x’. E em este (na pronúncia carioca e nordestina), é representado por ‘s’.

Embora nem sempre nos demos conta, há numerosos casos de sons múltiplos representados por uma única letra. Cada um dos dois ‘aa’ de cama indica um som diferente. O ‘e’ de chover não se pronuncia como o ‘e’ de mulher. O mesmo se dá com o ‘o’ de moça e o ‘o’ de roça.

Tem mais. O primeiro e o segundo ‘d’ de dedinho não soam da mesma maneira. O mesmo vale para os dois ‘d’ de cidade e para os dois ‘t’ de tomate. O ‘u’ de muito é nasal, enquanto o de cuido não é.

Não nos atrapalha ver a nasalização de vogais assinalada pela letra que vem a seguir ― geralmente um ‘m’ ou um ‘n’. Assim, o ‘a’ de cano, o ‘e’ de então, o ‘u’ de mundo têm som nasal.

Por razões alheias à gramática, não nos importa que a pronúncia de certas letras seja contrariada. Ao ler a palavra Mercosul, por exemplo, ninguém respeita o que está escrito (Mercozul); dizemos todos Mercossul. Fica criada mais uma função para o ‘s’ intervocálico.

Que fazer? A cavalo dado, não se olha o dente. O alfabeto que temos nos foi legado. Temos de usá-lo como é.

Escrita khmer

Escrita khmer

A língua khmer, da família das austro-asiáticas, é falada por 13 milhões de indivíduos distribuídos entre Camboja, Vietnam e Tailândia. Sua particularidade é ter o alfabeto mais sortido do planeta: são 72 letras. Entre elas, 32 vogais. Dá três vezes nosso abecedário! Em compensação, parece que a gramática é bastante simples. Uff! Melhor assim.

Só para apimentar: acaba de me ocorrer que a língua francesa tem por volta de quarenta maneiras de escrever o singelo som ‘o’. O, ot, od, hau, au, eau, ho, aux, aud são algumas delas. Há mais algumas dezenas.

Pensando bem, não podemos reclamar. Até que tivemos sorte.

Publicado originalmente em 20 jul° 2014.

Por causo que

José Horta Manzano

Escola 2Nos tempos em que escola ensinava e aluno aprendia, aulas começavam pontualmente. Se um aluno chegasse atrasado, tinha de bater à porta e pedir licença ao professor. O mais das vezes, o mestre consentia em deixar entrar o aluno. Logo em seguida, pedia justificativa para o atraso.

«Desculpa, professor, eu cheguei atrasado por causo que…»

Nesse ponto, o discurso era interrompido de chofre.

«Não se diz ‘por causo que’, menino! O certo é ‘por causa de’».

Interligne 18h

Meu distinto leitor já há de ter percebido que, nos dias atuais, esse diálogo está fora de moda . De fato, a expressão ‘por causa de’, em via de extinção, foi substituída pela estranha ‘por conta de’.

Não sei quem terá sido o primeiro a abandonar a locução tradicional. Suponho que o modismo tenha logo sido integrado às novelas, que são o meio mais rápido e eficaz de esparramar cacoetes (não só linguísticos) no Brasil.

Escola 3Na língua falada, é difícil escapar a modismos. Dado que a rapidez da elocução não deixa tempo para refletir, as palavras se encadeiam num semiautomatismo. Na língua escrita, a história é outra. O ritmo mais lento da redação permite ao escriba ser mais cuidadoso na escolha de vocábulos e expressões.

No entanto, mesmo na mídia escrita, ‘por conta de’ tem suplantado a locução tradicional por ampla margem. É surpreendente que locutores e articulistas não se preocupem em apurar o vocabulário, que é, no fundo, seu instrumento de trabalho.

Interligne 18h

Casos em que ‘por conta de’ se encaixa perfeitamente:

Interligne vertical 14Aos trinta anos, ainda vive por conta dos pais.

Patrão, quero pedir um vale por conta do salário do mês.

Ela assa os bolos. A venda fica por conta do marido.

Interligne 18h

Expressões que, conforme o contexto, podem substituir ‘por causa de’:

Interligne vertical 16 3Kfem virtude de
por efeito de
visto que
por obra de
uma vez que
graças a
dado que
em consequência de
devido a
já que
em razão de
porque
por motivo de
pois que
por ação de
por mérito de
em função de

Viram como língua é rica? Falar bem custa a mesma coisa e rende mais.

Língua complicada

José Horta Manzano

Você sabia?

Por razões históricas, a representação gráfica dos diferentes falares humanos não é uniforme. Há línguas que se valem de ideogramas, como o chinês. O japonês se serve de sistema complexo, com silabário e ideogramas. (Silabário é um sistema de escrita com um sinal gráfico para cada sílaba.)

A maioria das línguas escritas utilizam um alfabeto. Há dezenas deles. Em alguns casos, o alfabeto reflete os sons e as nuances da língua para a qual foi especialmente criado. Não é nosso caso.

Nossa língua herdou um alfabeto concebido para outra língua. Os escribas medievais foram obrigados a inventar letras, sinais e combinações para representar sons que não existiam no latim e para os quais não havia letras específicas.

Essa é a razão pela qual nossa escrita nem sempre bate com a fala. Escrevemos de um jeito e lemos de outro. A mesma letra pode ter mais de um som. Ao contrário, um único som pode ser representado de maneiras diferentes.

Escrita khmer

Escrita khmer

No português atual, uma única letra pode indicar até cinco(!) pronúncias diferentes. A letra ‘x’ é o exemplo maior. Soará como ‘ch’ em enxurrada, como ‘z’ em exame, como ‘s’ em excluir, como ‘ks’ em fixo. E será muda em excelente.

Por outro lado, o som ‘ch’ pode ser representado de três diferentes maneiras. Em acho, é indicado por ‘ch’. Em eixo, por ‘x’. E em este (na pronúncia carioca e nordestina), é representado por ‘s’.

Embora nem sempre nos demos conta, há numerosos casos de sons múltiplos representados por uma única letra. Cada um dos dois ‘aa’ de cama indica um som diferente. O ‘e’ de chover não se pronuncia como o ‘e’ de mulher. O mesmo se dá com o ‘o’ de moça e o ‘o’ de roça.

Tem mais. O primeiro e o segundo ‘d’ de dedinho não soam da mesma maneira. O mesmo vale para os dois ‘d’ de cidade e para os dois ‘t’ de tomate. O ‘u’ de muito é nasal, enquanto o de cuido não é.

Não nos atrapalha ver a nasalização de vogais assinalada pela letra que vem a seguir ― geralmente um ‘m’ ou um ‘n’. Assim, o ‘a’ de cano, o ‘e’ de então, o ‘u’ de mundo têm som nasal.

Por razões alheias à gramática, não nos importa que a pronúncia de certas letras seja contrariada. Ao ler a palavra Mercosul, por exemplo, ninguém respeita o que está escrito (Mercozul); dizemos todos Mercossul. Fica criada mais uma função para o ‘s’ intervocálico.

Que fazer? A cavalo dado, não se olha o dente. O alfabeto que temos nos foi legado. Temos de usá-lo como é.

Escrita khmer

Escrita khmer

A língua khmer, da família das austro-asiáticas, é falada por 13 milhões de indivíduos distribuídos entre Camboja, Vietnam e Tailândia. Sua particularidade é ter o alfabeto mais sortido do planeta: são 72 letras. Entre elas, 32 vogais. Dá três vezes nosso abecedário! Em compensação, parece que a gramática é bastante simples. Uff! Melhor assim.

Só para apimentar: acaba de me ocorrer que a língua francesa tem por volta de quarenta maneiras de escrever o singelo som ‘o’. O, ot, od, hau, au, eau, ho, aux, aud são algumas delas. Há mais algumas dezenas.

Pensando bem, não podemos reclamar. Até que tivemos sorte.