Meia hora de atraso

José Horta Manzano

Até fins do século XIX, cada vilarejo vivia à hora local. O relógio da matriz ritmava o tempo da população. Mas, sacumé, ninguém segura o progresso. Em matéria de hora, a multiplicação de estradas de ferro marcou o fim da informalidade. A exatidão do horário dos trens depende da uniformização da hora.

Só para dar uma ordem de grandeza do problema, observe-se que, num país de dimensões relativamente modestas como a França, a hora local podia variar até 40 minutos entre localidades situadas no extremo oeste e no extremo leste do território. A medição padronizada do tempo se impunha.

Hora local – vigente até fins do séc. XIX

Hora local – vigente até fins do séc. XIX

O Império Britânico era a potência dominante à época. Por feliz coincidência, o meridiano que passa sobre Londres, se prolongado para dividir o globo em duas metades, atravessa o Oceano Pacífico justamente numa região despovoada, entre Ásia e América. Assenta como luva para se tornar linha de referência.

Assim ficou combinado: o meridiano de Londres – dito GMT ou «de Greenwich» em referência ao observatório astronômico local – foi adotado como ponto de partida para a divisão virtual do globo em 24 fusos de mesmo tamanho, um para cada hora do dia.

A maior parte dos países contenta-se de um único fuso horário para todo o território, seja por razões práticas, seja porque a superfície cabe inteira num gomo só. Já outros se estendem por dois ou mais fusos. A Rússia, com onze fusos, bate todos os recordes.

Linha internacional da data

Linha internacional da data

Quase todos os países se conformaram em adotar horas inteiras: GMT+1, GMT+5, GMT-3, etc. Fica mais cômodo. Mas é difícil pôr todo o mundo de acordo. Há um clube fechado de países que, mais meticulosos, optaram por hora quebrada: GMT+9½, GMT-5½. Há até um caso excepcional: o Nepal adotou o fuso GMT+5h45, caso único.

ChavezUm belo dia, a Venezuela de Chávez decidiu mudar de fuso horário. A razão invocada foi a adequação da hora oficial à hora solar. Poucos acreditaram. Observadores atribuem a reviravolta à síndrome do “falem mal, mas falem de mim”, atitude típica de mandatários autocráticos. Dia 9 dez° 2007, os relógios de todo o país foram atrasados em meia hora. Vivem agora num fuso sui-generis: GMT-4½.

Ultimamente, a Coreia do Norte – país mais fechado do planeta – considerou que era chegada a hora de apagar o último vestígio da colonização japonesa, encerrada faz exatos 70 anos. Dia 15 ago 2015, todos os relógios daquele triste pedaço de mundo foram atrasados em meia hora. Dando adeus à hora de Tóquio, os coreanos do norte vivem agora no original fuso GMT+8½.

Para o observador atento, é sintomático que dois países governados de modo truculento tenham atrasado os relógios. Vai além de simples coincidência. É marca simbólica de um atraso não de meia hora, mas de um século.

Miscelânea 12

José Horta Manzano

Desenvolvimento humano
O PNUD ― Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ― publicou a classificação do desenvolvimento humano das unidades federativas do Brasil. O estudo está baseado nos dados do censo de 2010 e consolida os índices de renda, de longevidade e de educação apurados em cada município.

Classificação IDHM 2010

Classificação IDHM 2010 – por Unidade Federativa

Os últimos classificados na lista são, na ordem: Pará (25° lugar), Maranhão (26° lugar) e Alagoas, o campeão do atraso, em 27° e último lugar.

Faz décadas que os clãs Barbalho, Sarney e Collor ― cada um na sua terra ― vêm exercendo influência pesada nos três Estados que ora aparecem com os piores índices de desenvolvimento.

Qualquer relação entre esse coronelato e o atraso da população pode não ser mera coincidência. Veja aqui, em resolução superior, o quadro no site do PNUD.

Interligne 18e

Horário de verão
Para mim, a palavra horário evoca uma tabela organizada com horário de trem, de avião, de aula, de trabalho. O que os ingleses costumam chamar timetable. Pessoalmente, para definir a mudança da hora oficial no período estival, prefiro a expressão hora de verão. Mas horário de verão está bem ancorado na língua. Vamos de horário mesmo.

Depois de muito vaivém na fixação anual de sua data de início e de fim, o período durante o qual os relógios têm de ser adiantados estabilizou-se a partir do Decreto n° 6558, de 2008. Ficou combinado que a operação começa no terceiro domingo de outubro e termina no terceiro domingo de fevereiro.

Nos anos em que o término coincidir com o Carnaval, a volta à hora normal se fará no quarto domingo de fevereiro. Não entendo bem a relação entre o Carnaval e a hora legal, mas o legislador houve por bem evitar a coincidência. Talvez para não amputar uma hora da festa maior ― evitar revoluções é dever de toda autoridade.

Na Europa, faz 30 anos que o acordo é o seguinte: adiantam-se os relógios no último domingo de março e volta-se a atrasá-los no último domingo de outubro. Um detalhe notável, no entanto, faz a diferença. Na Europa, estudos revelaram que o momento mais calmo do dia está situado entre as 2 horas e as 3 horas da madrugada. Assim, quando os relógios marcam as 2h da manhã do último domingo de março, passa a ser 3 horas. E às 3 horas do último domingo de outubro, atrasam-se os relógios para marcarem 2 horas.

É curioso que, no Brasil, tenham pensado em não perturbar o Carnaval, mas não tenham situado a mudança na hora mais sossegada da madrugada.

Seja como for, a partir de 27 de outubro, Brasil e Europa estarão separados apenas por 3 horas.

Relógio ― modelo oficial da Rede Ferroviária Suíça

Relógio ― modelo oficial da Rede Ferroviária Suíça

Há uma outra particularidade brasileira advinda do fato de nem todos os Estados aderirem à mudança de hora. Dou-lhes um exemplo significativo. O município de Caravelas (BA) está situado na mesma latitude de Santa Rita do Araguaia (GO). Dado que as duas estão separadas por quase 15 graus de longitude, a hora solar, inflexível, determina que a cidade baiana está uma hora à frente da goiana. Esse é o tempo real, astronômico. No entanto o horário de verão gera uma surpreendente distorção. Quando for meio-dia em Caravelas, já será uma hora da tarde em Santa Rita, na contracorrente da lógica geográfica.

Como já cantava Noel Rosa, num maxixe de 1932, são nossas coisas, são coisas nossas. Se quiser ouvir a gravação original, clique aqui.