Baú de memórias ‒ 2

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma vez aberto, meu baú de memórias se recusa a ser fechado de novo. Desta vez, as recordações que inundam minha mente dizem respeito a uma experiência tragicômica vivida em família.

Meus avós paternos tiveram 15 filhos biológicos e adotaram outros 17. Meu avô era um rico e pacato fazendeiro de Minas Gerais e espaço não era propriamente o que faltava, nem em suas terras, nem em seu coração. Não é preciso muito esforço de imaginação, no entanto, para prever os infinitos problemas do cotidiano que ele e minha avó tiveram de administrar para cuidar de 32 filhos.

Na adolescência, como era previsível e inevitável, a convivência íntima acabou funcionando como combustível para que alguns filhos biológicos se apaixonassem por seus irmãos adotivos, ou vice-versa. Os mais determinados e rebeldes ignoraram a falta de benção do patriarca e se casaram. Logo a família crescia em ritmo exponencial.

filharada-1Quando, em 1929, explodiu o ‘crack’ da bolsa de Nova Iorque, a única saída que meus avós visualizaram para continuar mantendo com dignidade uma família tão extensa foi a de enviar os filhos mais velhos para trabalhar em São Paulo. Meu pai foi um deles. Aqui se profissionalizou e formou família. Só voltava à casa dos pais nas férias, levando consigo os 5 filhos.

Vivendo e estudando em São Paulo, eu não tinha como me manter em dia com os acontecimentos do ramo mineiro da família. Já não sabia quem tinha nascido, morrido ou casado e já não me lembrava mais quem era filho ou irmão de quem.

Certo dia, já adulta, recebi a notícia de que minha madrinha de batismo havia morrido. Como, na época, meus pais já estavam separados, minha mãe pediu que eu fosse dar a notícia a meu pai em seu novo endereço. Imaginando que o único vínculo que ligava minha madrinha a ele era o fato de ela ser casada com um tio adotivo, não me preocupei em tomar precauções especiais ao dar ciência do ocorrido. Ao ouvir a notícia, meu pai cambaleou, levou a mão ao peito como se estivesse tendo um infarto e, sem ar, disse chocado: “Você está dizendo que minha irmã morreu??”

Para meu supremo espanto, só descobri naquele segundo que ambos, minha madrinha e seu marido, eram na verdade irmãos adotivos de meu pai. Era tarde demais para fazer alguma coisa. Consolei-o como pude e o levei ao cemitério. Lá, uma multidão de parentes mineiros nos aguardava. Meu pai, ainda muito abatido, sentou-se a meu lado num banco do lado de fora da capela. Permaneceu calado a maior parte do tempo, limitando-se a me abraçar e segurar minha mão. Quando chegou a hora de fechar o caixão, ele levantou-se e perdeu-se em meio ao tumulto que se formou.

Foi quando um desconhecido se aproximou de mim e, com um ar entre curioso e lascivo, deu início a um verdadeiro interrogatório. Nome, idade, profissão, local de residência, nada escapou. Mesmo pressupondo que se tratasse de um amigo da família, eu me esquivava como podia das respostas, já que a tentativa de intimidade forçada só fazia aumentar minha irritação.

cimetiere-1Quando já me preparava para levantar e me afastar dele, veio a última pergunta que esclareceria de vez todo aquele imbróglio: “Desde quando você conhece o Oswaldo? ”. Sem entender o propósito de uma pergunta tão sem pé nem cabeça, respondi de mau humor: “Desde o dia em que nasci, oras!”. Totalmente constrangido, o rapaz abaixou a cabeça, levantou e foi embora.

Na volta para casa, perguntei se meu pai sabia quem era ele. Resumo da ópera: o jovem impertinente era um dos tantos primos que eu não conhecia. Ao testemunhar a forma afetuosa e íntima com que meu pai me tratava, ele simplesmente havia imaginado que eu fosse sua namorada atual.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Casamento gay

José Horta Manzano

Quando a infamante qualificação de filho ilegítimo ou filho natural foi oficialmente abolida no Brasil, dez anos atrás, já fazia muito tempo que, na prática, os documentos de identidade não mais ostentavam essa especificação discriminatória. Até os anos 1930, 1940, os formulários de registro de nascimento brasileiros traziam uma linha pré-impressa com os dizeres «filho(a) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ de (…)». O espaço tracejado servia para informar se o pequerrucho era nascido de pais casados ou não.

Havia os legítimos, filhos de pais casados. E havia os ilegítimos, naturais ou ― se o escrivão estivesse de mau humor ― bastardos. Os tempos mudaram. Hoje em dia, mostrar esse detalhe não faria o menor sentido.

Neste 23 de abril, o parlamento francês aprovou, em votação definitiva, a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Até aí, morreu o Neves, como diria o outro. Não há aí nenhum pioneirismo. Outros 13 países já haviam seguido o mesmo caminho antes. Por que, então, a França tem sido palco de tantas manifestações, passeatas, discursos inflamados, uma gritaria que não acaba mais?Drapeau arc-en-ciel

A razão não está no cerne da nova lei, que, de qualquer maneira, reflete os tempos atuais. Duas pessoas que decidam compartilhar seu destino, quer sejam do mesmo sexo ou não, têm direito a serem tratadas e consideradas como um casal. Um par, se preferirem.

Herança, direito de visita em caso de internação hospitalar, situação perante o fisco, pensão alimentar em caso de divórcio são agora, aos olhos da lei, as mesmas para todos os casais. Sejam eles homo- ou heterossexuais. Em caso de falecimento do parceiro, problema espinhoso em todos os sentidos, as consequências e os trâmites post mortem passam a ser os mesmos para todos os casais.

Parece justo. Até aí, poucos se sentirão chocados com a nova regulamentação. O problema maior, aquele que agitou (e continua agitando) multidões, é um dos dispositivos da lei. Foi concedido aos casais de mesmo sexo o direito a adotar. Uma adoção plena transmite à criança o sobrenome do pai. E agora, como é que fica?

Joãozinho carregará pelo resto da vida documentos em que aparece como filho de Pedro e de Paulo, ou de Maria e de Marisa. Qual dos pais (ou das mães) legará o sobrenome ao rebento? Sem dúvida, ser filho de ladrão, de assassino, de traficante é bem pior, concordo. Assim mesmo, convenhamos, ser oficialmente filho de dois pais ou de duas mães não deve ser situação fácil para um guri frágil e imaturo.

Os franceses que, por um sim ou por um não, entram em greve e fazem passeata, não deixaram passar em branco a oportunidade. O país dividiu-se entre os que são a favor da nova lei e os que se opõem a ela. Para uns, já estava passando da hora de encarar a modernidade e desempoeirar o arsenal judiciário. Para outros, é cedo demais para assumir o risco de expor crianças a situações potencialmente vexatórias.

Mas há que manter a cuca fresca e encarar essas mudanças filosoficamente, com uma certa distância. Se não fosse hoje, seria amanhã, no ano que vem ou daqui a poucos anos. Portanto, por que não já?

Assim como filhos «ilegítimos» já não assustam ninguém, alguns anos bastarão para que a poeira baixe. Filhos de dois homens ou de duas mulheres farão parte da paisagem.

Daqui a algumas dezenas de anos, algum articulista ainda há de mencionar o rebuliço que a oficialização do casamento gay causou na França de 2013. Os filhos de nossos netos dificilmente entenderão o porquê de tanto barulho.

Duas histórias para pensar em casa

José Horta Manzano

Primeira história
O jovem Alcebiades é um bom rapaz, sorridente, generoso, sempre pronto para dar uma mão a quem precisa. Seu defeito maior é vestir-se como gosta, apresentar-se ao mundo como lhe dá na telha. Não dá muita bola paCrete rouge 2ra o que os outros vão pensar. Ele é assim, uai.

Um dia, resolveu mandar rapar a cabeça nas laterais, deixando apenas uma faixa de cabelo da testa até a nuca. Pintou a crista de vermelho e modelou-a com gel ― parece que está na moda. Mandou fazer alguns piercings entre sobrancelhas, orelhas e lábios. Sem esquecer da língua, naturalmente.

Cebide, como é conhecido, gosta de contacto com gente e resolveu candidatar-se a um emprego de atendimento ao público. Currículo para lá, telefonema para cá, tudo correu bem. Foi chamado para entrevista.

Para se apresentar pessoalmente, Cebide achou que uma boa camada de sombra em torno dos olhos lhe daria um ar mais sério. Vestiu-se de negro dos pés à cabeça e foi. Não conseguiu passar da portaria da firma, o coitado. Foi barrado pelo segurança. Teimou, garantiu que tinha entrevista marcada. O leão de chácara foi-se informar e, meio a contragosto, deixou-o passar.

A moça da recepção mandou-o sentar-Crete rouge 1se numa salinha acanhada, lá no fundo do corredor. Depois de uma boa meia hora de espera, ela voltou para avisar que, infelizmente, o selecionador tinha tido um imprevisto e não ia poder recebê-lo. Cebide foi-se embora desenxabido e nunca mais conseguiu marcar outra entrevista lá.

Nosso amigo chegou até a desconfiar que a recusa pudesse ter sido causada por sua aparência física. As pessoas são preconceituosas, sacumé, não conseguem imaginar que há coisa boa por detrás de uma aparência surpreendente. Mas resolveu deixar pra lá. Achou que não valia a pena, que a vida é assim mesmo. Da próxima vez, havia de dar certo.

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Segunda história
Um casal de classe média alta, já de idade madura, tinha muita vontade de ter um filho pequeno. Por algum motivo, tomaram a decisão de adotar. O destino é insondável. Os dois, brancos, tornaram-se pais adotivos de um menininho de pele negra. A história não registrou detalhes, mas é de crer que os três viviam felizes.inter-racial adoption

Um dia, foram visitar uma concessionária de automóveis importados da Alemanha, daqueles potentes, raçudos, de forte cilindrada. Coisa que não está ao alcance de qualquer mortal. Levaram o menino junto.

A um dado momento, enquanto o casal se preparava a entreter-se com o gerente da loja, o filho afastou-se alguns metros. O dirigente não se deu conta de que os três estavam juntos. Ao ver um menino pequeno e negro dentro de uma concessionária daquele porte, tomou-o por um intruso e não teve dúvida: fez que fosse enxotado.

Chocados, os pais julgaram que o acontecido não podia ficar por isso mesmo. Passando por cima do gerente, endereçaram uma reclamação diretamente à diretoria do grupo automobilístico. E não pararam por aí: criaram uma página numa dessas redes sociais para dar publicidade ao episódio. Só não deram queixa à polícia. Por enquanto.

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Epílogo
A primeira história é totalmente inventada. Caso se assemelhe a algum fato real, terá sido mera coincidência. Já a segunda é verídica. Pode ser conferida no artigo publicado pela Folha de São Paulo faz pouco mais de duas semanas.Adotado 2

Parece-me interessante traçar um paralelo entre esses dois fatos que põem em evidência casos de gente bruscamente descartada com base na aparência externa. Surgem muitas perguntas , mas, infelizmente, poucas respostas.

O Cebide ficou quieto, enquanto o casal estrilou. Por que essa diferença de reação? Será porque o primeiro é pobrezinho enquanto os outros estão bem de vida? Será porque o preconceito que vitimou o casal foi classificado como racial, ao passo que o que prejudicou o Cebide foi apenas facial? Se o menininho enxotado não fosse filho do casal branco, será que teria tido direito a página de desagravo no facebook? Se o Cebide fosse um figurão, será que teria sido tratado com a mesma sem-cerimônia?

A rejeição ao diferente é inerente a todo ser vivente. É síndrome ancestral. As leis de quotas raciais que se propagam hoje em dia perigam maquiar o problema sem resolvê-lo. Pelo contrário, o risco é de que venham a azedar ânimos e a criar uma vala entre “os de cá” e “os de lá”. Em resumo: o resultado pode ser exatamente o oposto do que se pretendia.

Quando várias comunidades, sejam elas étnicas ou raciais, são obrigadas a conviver, enorme cuidado tem de ser tomado antes de votar leis que favoreçam uns em detrimento de outros. No Brasil, esse assunto tem sido tratado com leviandade.

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