Para multimilionários

José Horta Manzano

Há, na Suíça, um punhado de «exilados fiscais». São multimilionários estrangeiros que residem oficialmente no país e que gozam de estatuto fiscal especial. O trato estipula que não podem exercer atividade remunerada em território nacional. Assim procedendo, não pagam imposto sobre ganhos auferidos no exterior.

Em contrapartida, pagam um «imposto sobre despesas» – um montante fixo, calculado sobre os gastos do estrangeiro. Cada caso varia, mas, em geral, o imposto corresponde a cinco a sete vezes o valor do aluguel. Se o exilado vive em casa própria, toma-se por base o valor locativo teórico do imóvel.

Não há muita gente nessa categoria de contribuintes: no país inteiro, são cerca de 5500 indivíduos. Dada a voracidade do fisco francês, um terço dos exilados vêm daquele país.

Mansão de Schumacher, à beira do Lago Léman, Suíça

Mansão de Schumacher, à beira do Lago Léman, Suíça

Atenção, não estamos falando de fundos de ditadores africanos! Nem de dinheiro sujo oriundo de tráfico, corrupção ou propina! Os principais beneficiários do estatuto vêm do mundo do esporte e do espetáculo, gente que ganha a vida com seu trabalho. Charles Aznavour, Alain Prost, Alain Delon, Roman Polanski, Michael Schumacher são alguns deles.

O imposto total arrecadado desses cidadãos atingiu, em 2012, setecentos milhões de francos suiços (mais de 2 bilhões de reais), montante considerável, pra ninguém cuspir em cima.

Alguns suíços acham injusto que seja permitido, a esses privilegiados, fugir à tributação de seu país de origem, enquanto a massa da população local não tem como escapar. Na Suíça, como no resto do mundo, cidadão comum é obrigado a pagar imposto sobre todos os seus rendimentos. Sem direito a reclamar.

Faz alguns anos, o PS (Partido Socialista) lançou colheita de assinaturas para forçar um plebiscito sobre o assunto. Reclamavam da injustiça embutida nessa desigualdade de tratamento e pleiteavam a abolição do estatuto especial. As autoridades fiscais não apreciaram muito a ideia. Consideram – com razão – que o elevado montante proveniente dos privilegiados é pra lá de bem-vindo.

Resultado do plebiscito suíço de 30 nov° 2014 – Por cantão

Plebiscito suíço de 30 nov° 2014   –   Resultados por cantão

No entanto, o número necessário de assinaturas foi alcançado dentro do prazo estipulado. Conforme reza a Constituição, marcou-se a data do plebiscito. Foi neste 30 nov° 2014. Para desencanto dos autores da petição – e para alegria das autoridades fiscais – o povo rejeitou a abolição da peculiaridade fiscal helvética. Uma maioria de 59% dos cidadãos entendeu que, se injustiça houver, ela não fere o cidadão suíço.

De toda maneira, se o estatuto atual fosse abolido, o mais provável é que os ricaços fossem embora. Sacumé, sempre haverá algum país pronto a acolhê-los de braços abertos. Portanto, a Suíça perderia importante fonte de renda sem que justiça fosse feita.

No fundo acredito que, por detrás da luta contra uma hipotética «injustiça fiscal», se escondia uma tremenda inveja, isso sim. Na minha opinião, a decisão do povo suiço foi sensata.

Miscelânea 02

José Horta Manzano

Lá como cá
Sylvie Andrieux, de 51 anos, é deputada socialista francesa há 15 anos. Acaba de ser condenada a 3 anos de prisão. Terá de cumprir o primeiro ano em regime fechado. Durante os dois anos seguintes, estará em liberdade condicional.

Seu crime? Desvio de dinheiro público. O tribunal reconheceu que a deputada favorecia ongs fictícias e associações inexistentes. Ao final, o dinheiro servia para comprar votos. O montante total do «malfeito» foi de 740 mil euros.

No Brasil, desvio de dinheiro público para compra de votos é «malfeito» tão banalizado que já não comove ninguém. Caso a Justiça decidisse mandar todos os infratores para a prisão, melhor seria cercar o Congresso.

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O exílio fiscal
Gérard Depardieu, o ultraconhecido ator francês, é russo fresco, ou seja, tornou-se cidadão russo há poucos meses. Declarou que se sente muito orgulhoso da nova nacionalidade.Gérard Depardieu 2

Para respeitar a obrigação que têm todos os habitantes do território russo, declarou seu endereço às autoridades competentes. Reside à Rua da Democracia n° 1, em Saransk. Sem brincadeira.

O ator acaba de desembarcar em Grojny, na Tchetchênia, para começar a rodar Turquoise, seu novo filme.

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Azeite «do bom»
Mesas de restaurantes europeus costumam servir de morada permanente a uma cestinha meio ensebada onde se alojam o sal, a pimenta, o tempero em pó e a indefectível garrafinha de azeite. Até restaurantes «de bandeja» ― semelhantes àqueles que no Brasil são chamados «por quilo» ― exibem a cesta.Cesta condimentos 2

Como Big Brother, a União Europeia cuida da saúde de seus súditos. Os europeus podem dormir tranquilos, que seus interesses estão em boas mãos. Acaba de ser editado um novo regulamento visando à proteção da saúde dos habitantes.

A partir de 1° de janeiro de 2014, os europeus dirão adeus àquelas garrafinhas bojudas que, raramente lavadas, eram preenchidas de azeite à medida que se iam esvaziando. A regra entra em vigor simultaneamente em todos os países-membros.

A administração da UE não quer mais ouvir falar em garrafinhas gordurosas contendo azeite de origem duvidosa. Os novos modelos terão de ser fabricados de forma a impedir a recarga. Uma vez comprados e utilizados, terão obrigatoriamente de ser descartados.

Sei não. Aqui como lá, sacumé, fatta la legge, fatta la burla(*). Já deve ter gente tentando encontrar um meio de recarregar as garrafinhas.

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Les saints de glace
Um dos espantalhos dos agricultores da Europa centro-meridional é o gelo. Não falo do frio do inverno, quando a natureza adormecida está preparada para receber neve e temperaturas glaciais. Falo das geadas de primavera.

A partir de março, a primavera faz ressurgirem brotos e flores. Em abril, a floração das árvores chega ao máximo. Cerejeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, abricoteiros colorem a paisagem. No começo de maio, as flores murcham, caem e dão lugar aos frutos.

Nessa época, as frutinhas são ainda pequeninas e frágeis. Uma tempestade de granizo ou um frio extemporâneo pode dar cabo delas. A preocupação maior dos agricultores é que uma geada sobrevenha e arrase com a plantação.

Desde a alta Idade Média, o povo acostumou-se a invocar a proteção dos chamados saints de glace ― santos de gelo. Trata-se de santos cuja existência é às vezes posta em dúvida, mas que figuram assim mesmo na hagiografia cristã. Implora-se a eles que intercedam junto ao Altíssimo para que não venha nenhuma geada nesse período crítico. A partir de junho, já não faz falta invocar nenhuma entidade: o perigo já está esconjurado pela força do verão.Saints de glace

Conforme o país e a região, cultuam-se diferentes santos de gelo. Na maior parte da França e da Suíça, o povo pensa em São Mamert, São Pancrácio e São Servásio, cujas festas são em 11, 12 e 13 de maio, respectivamente.

Regiões situadas mais ao norte preferem invocar santos cuja celebração ocorre alguns dias mais tarde. Ao contrário, territórios meridionais dirigem suas súplicas a santos comemorados logo no começo de maio.

A razão é simples: no norte da Europa, o perigo das geadas vai até o fim de maio, enquanto nos países mediterrâneos já praticamente desaparece no fim de abril.

Este ano, com invocação ou sem elas, a primavera ainda não se fez sentir. Os dias se alongam, é verdade. Flores já apareceram, já se foram, pássaros já procriaram. Mas o sol ainda não apareceu. Chove diariamente. A previsão é de fraca queda de neve sexta-feira 24 de maio, coisa que não se vê há muitas décadas.

Já não se fazem mais santos de gelo como antigamente. Ou será que o povo se descuidou e deixou de invocá-los?

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(*) Nem bem foi feita a lei, já se inventa a maneira de burlá-la. Provérbio italiano.