De aluguel

Jornal O Globo, 12 março 2023

José Horta Manzano

Em matéria de desculpa esfarrapada, Madame Bolsonaro parece ter absorvido os costumes do clã em que se enxertou. Pensando bem, isso é importante para alguém que almeja dar continuidade aos passos do esposo impedido. É o que fez, 50 anos atrás, Isabelita Perón, ao assumir a Presidência da Argentina na sequência do falecimento de Juan Domingo Perón, seu marido.


“Estou morando de aluguel”


Convenhamos que há desculpas melhores para quem quer se livrar do estorvo de ter que cuidar de filhotes que estraçalham chinelos e fazem xixi pela casa toda.

“Meu apartamento é pequeno demais, um verdadeiro apertamento. Cachorrinho novo precisa de espaço” – seria aceitável.

“Estou levando uma vida extremamente agitada e não me sobra tempo pra paparicar filhotinhos que precisam de muita atenção” – também seria plausível.

“Meu marido já não mora no Brasil e isso me obriga a viajar frequentemente. Não gosto de deixar os bichinhos com cuidadores” – seria demonstração de coração sensível.

“Não gosto de animais. Detesto ter bicho em casa. Os que eu tenho já me dão dor de cabeça suficiente” – seria desculpa violenta, combinando com o espírito bolsonárico. Muita gente vibraria.

Há ainda uma bacia de pretextos cabíveis, basta pensar cinco minutos.

Agora, dizer que não pode ficar com as crias porque está morando de aluguel? Tremenda falsidade. E tremenda falta de imaginação.

Se morar de aluguel e ser tutor de bicho de estimação fossem realidades incompatíveis, haveria poucos cachorrinhos e gatinhos de família.

Touradas em Madri

José Horta Manzano

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Chamada do Estadão, 13 nov° 2016

Ok, ok, ninguém é santo. Quem é que nunca cabulou quando estava na escola? Quem é que nunca deu uma desculpa esfarrapada ao voltar tarde pra casa? Ou no dia em que faltou no serviço?

Agora, inventar um pretexto é uma coisa. Publicá-lo na rede ‒ com foto e tudo ‒ já é burrice da grossa. Ah, essa vaidade…

Falando nisso, que é que vai acontecer com o doutor que assinou o atestado? Fica por isso mesmo?

Interligne 18c

Este post foi preparado já faz algum tempo, logo que saiu a divertida notícia. Acabou esquecido num escaninho e nunca foi publicado. Reencontrei hoje. Dado que continua me parecendo hilário, ‘compartilho’ ‒ como se costuma dizer neste mundo moderno.

Juridiquês cá e lá

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Primeiro foi:
“Sou inocente.”

Depois foi:
“Errar é humano.”

Agora é:
“Não houve ilegalidade alguma e, se ilegalidade houve, não houve dolo.”

Interligne 18c

Ao saber dessa última forma de defesa entregue ao Senado pelo advogado da presidente afastada, não pude deixar de lembrar de um episódio ocorrido com meu pai há mais de meio século.

Meu pai era um homem extremamente supersticioso. Mineiro, tinha mil e uma manias, todas desenvolvidas desde menino como modo de se proteger de má sorte, inveja ou mau olhado. A coisa era tão complexa e multifacetada que, quando não sabia bem como explicar a razão de algum procedimento esdrúxulo, ele argumentava em tom de brincadeira que “corro o risco de meu filho nascer sem dentes e sem cabelos”. Dentre elas, uma se destacava: carregava consigo, no bolso da calça, por onde fosse, uma figa.

Anhangabau 1Certo dia, a caminho do trabalho no centro da cidade, ele se preparava para atravessar o Viaduto do Chá, bem em frente ao atual prédio da prefeitura paulistana. Cuidadoso como sempre, ele olhou para os dois lados e, não tendo detectado nenhum sinal de perigo, desceu da calçada. Apressou o passo, mas não conseguiu terminar a travessia. Foi atropelado no meio da pista por um ônibus que trafegava pela contramão e acima da velocidade permitida. Certamente, contava ele, o motorista do coletivo devia ser um novato em treinamento que, ao se dar conta de que havia feito uma conversão errada, havia acelerado para escapar do flagrante e voltar ao trajeto habitual.

Um detalhe tragicômico, ao qual, diga-se de passagem, ele nunca fez menção: atada por uma corrente de ferro ao para-choque do veículo, havia uma imensa e pesada figa de metal. Com o movimento brusco de freada, a figa oscilou violentamente e atingiu meu pai na lateral da cabeça, provocando um afundamento significativo do crânio – talvez a lesão mais preocupante entre todas.

Figa 1Socorrido por passantes, ele foi levado ao hospital. Havia quebrado várias costelas, uma das vértebras do pescoço, o braço direito e a clavícula do lado esquerdo. Passou vários dias internado e, quando voltou para casa, a família foi obrigada a enfrentar longos quatro meses de cuidados especiais: dando comida na boca, ajudando-o a se sentar e se levantar e se responsabilizando por toda sua rotina de higiene pessoal, já que os dois braços engessados e o pescoço imobilizado o impediam de exercer qualquer uma dessas atividades.

O trabalho também, é claro, foi prejudicado. Teve de se afastar temporariamente do cargo. O ócio e as longas horas sentado em casa logo o deixaram transtornado. Desenvolveu depressão, insônia, ansiedade, irritação e, consequentemente, problemas digestivos. Obcecado com a ideia de retomar sua autonomia no trabalho e como chefe da casa, ele decidiu processar a companhia de ônibus.

Onibus 8Naquela época, não havia serviço especializado de ambulância para atender emergências. Ninguém havia pensado em anotar o nome das pessoas que o haviam ajudado a se levantar. Mesmo sem testemunhas que corroborassem sua tese de que o ônibus estava fora de rota e acima da velocidade permitida, ele foi em frente com o processo.

Alguns anos mais tarde, saiu a sentença definitiva: o juiz havia dado ganho de causa à empresa de ônibus, impressionado talvez com a surreal argumentação com que o departamento jurídico havia apresentado sua defesa. Anexada aos autos, lá estava escrito com todas as letras para a eventualidade de que alguém ousasse duvidar da total inocência da companhia: “…não havia nenhum veículo de nossa empresa circulando por aquele local, naquela hora, e, se houvesse, não havia motorista a bordo”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.