Oriente tão próximo

As lágrimas dos dois lados
Folha de SP, 17 out° 2023

José Horta Manzano

Uma visão eurocêntrica dividiu em três as terras situadas para o leste e atribuiu-lhe os nomes de: Oriente Próximo, Médio Oriente e Extremo Oriente.

O Extremo Oriente é fácil de identificar. Todos concordam que inclui a China, o Japão, as Coreias, a Sibéria oriental e os países do sudeste da Ásia.

Já o Oriente Próximo e o Médio Oriente se sobrepõem e não cabem dentro de limites amplamente aceitos. Alguns atribuem a denominação de Oriente Próximo aos contornos do antigo Império Otomano. Outros incluem países do norte da África, como o Marrocos e a Argélia. Outros ainda acrescentam a Península Arábica inteira.

Nessa inconsistência toda, o enorme subcontinente indiano fica sistematicamente de fora. Não se encaixa em nenhuma das subdivisões.

Hoje quero me referir à região da Palestina e de Israel, mas não sei se devo situá-los no Oriente Próximo ou no Médio Oriente.

O que não se consegue decidir, decidido está. O distinto leitor tem o direito de reclamar, mandar cartinha para a Redação e dar sua opinião.

Faz dez dias que o mundo observa assustado os acontecimentos da região. Aquela terra está em permanente conflagração, com episódicas irrupções de violência maior. Mas a irrupção atual não é apenas mais uma, chama a atenção por repentina, sangrenta e de mau agouro.

Repentina porque nada nem ninguém esperava uma explosão dessa magnitude. Sangrenta porque já custou a vida de milhares de humanos, de um lado e de outro do conflito. De mau agouro porque, dure quanto durar o estado de comoção, os tempos futuros hão de se ressentir, e a desconfiança mútua promete se enraizar ainda mais.

O tiro de partida do atual episódio foi dado, de surpresa e no escuro da madrugada, por paramilitares do Hamas – grupo islamista tachado de organização terrorista por dezenas de países.

Numa ação ousada, acobertados por salvas de mísseis lançados da retaguarda, comandos do Hamas penetraram em território israelense, metralharam civis desarmados, assassinaram centenas de cidadãos comuns e sequestraram duas centenas de pessoas cujo único pecado era ter cruzado o caminho dos assaltantes.

Por mais que pareça estranho, também a guerra tem suas regras, definidas pela Convenção de Genebra de 1864 e protocolos adicionais, e referendadas por praticamente todos os países do mundo. Os comandos do Hamas cometeram atos proibidos pela Convenção: ataque a alvos civis e sequestro de inocentes. O mundo civilizado não pode tolerar esse tipo de ações.

Por outro lado, as represálias de Israel tampouco estão “dentro das 4 linhas” das Convenções de Genebra. Cortar o fornecimento de água e eletricidade de um exíguo território onde 2,3 milhões de pessoas vivem apinhadas e, ainda por cima, bombardear alvos aleatórios, noite e dia, sem preaviso – eis outro comportamento proibido pelas regras e considerado crime de guerra.

Um observador desatento dirá que Hamas e Israel se igualam, que ambos cometem crimes de guerra e escancaram seu desprezo pela vida humana. Eu vou mais longe.

Que o Hamas tenha afrontado as regras bélicas e atentado contra vidas civis é atitude atitude altamente reprovável, que só vem reafirmar a inclusão do grupo na categoria de organização terrorista.

Israel, porém, não é um grupo de guerrilheiros selvagens – é um Estado constituído e organizado, membro da ONU, reconhecido no planeta.

Ao assumir atitudes como aplicar castigo coletivo a dois milhões e meio de indivíduos e privar hospitais de energia e água, o Estado de Israel faz pior que os selvagens da organização terrorista que diz combater.

Palavras têm peso

José Horta Manzano

Apesar do descontrole que reina nas redes sociais, terreno em que cada um se sente autorizado a dizer qualquer besteira a qualquer momento, palavras têm peso.

Apesar do descontrole que reina na mente de Bolsonaro, e que o faz sentir-se livre de dizer tudo o que lhe passa pela cabeça a todo momento, palavras ainda têm peso.

Apesar do descontrole que reina no miolo de muitos políticos, e que lhes permite atacar, insultar e tentar “cancelar” qualquer um a todo momento, palavras continuam tendo peso.

Bolsonaro, que vem sendo eficientemente blindado por correligionários por ele mesmo instalados em postos-chave da República, tem escapado a toda sanção. E vai continuar escapando até o dia em que cair do coqueiro. Como se sabe, tudo o que sobe acaba caindo um dia; e, quanto maior o coqueiro, maior o tombo.

Estes dias, um deputado federal do campo bolsonarista me fez lembrar o Zé Grandão Bobo, personagem de HQ da minha infância. Era um urso, sempre desenhado armado de porrete. Era grandalhão e espalhafatoso mas inofensivo.

O deputado foi condenado a portar tornozeleira eletrônica. Num ato de grande coragem, convocou a mídia e passou 24 horas refugiado na Câmara para escapar ao vexame. Pois o rapaz tem as características do antigo personagem: é grandalhão, é bobo e não passa de um zé qualquer.

Se está nessa sinuca é porque não se deu conta de que as palavras têm peso. Insultou, em mais de uma ocasião, magistrados do STF, uma temeridade para quem goza de foro especial e sabe que, se for julgado um dia, seus juízes serão… os magistrados do STF.

Parece coisa de débil mental. Como resultado evidente, o deputado não contou com a indulgência dos juízes. Vai ter de usar a algema eletrônica, queira ou não queira. Mostrou fazer jus a minha observação: é zé, é grandão e é bobo.

O mundo inteiro descobriu ontem cenas de horror provenientes da Ucrânia. Em peso, a mídia mostrou as atrocidades cometidas pelo exército russo na pequena cidade de Butcha, abandonada pelos invasores coalhada de cadáveres de civis executados a sangue-frio.

Chocados com o que viram, alguns dirigentes não pesaram as próprias palavras e falaram em genocídio. Zelenski, o presidente da Ucrânia, foi o primeiro a usar esse qualificativo para o que se passou naquela cidadezinha da periferia de Kiev. Sendo ele o presidente do país agredido, dá pra relevar o deslize.

Fica mais difícil dar o mesmo desconto aos primeiros-ministros Pedro Sánchez (Espanha) e Mateusz Morawiecki (Polônia), que utilizaram o mesmo termo de genocídio. Estão enganados.


Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é oficial e rigorosa: é a exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. Corresponde, portanto, a limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos étnico-religiosos ou por loucura.


Aconteceu na Bósnia-Herzegovina nos anos 90, quando batalhões sérvios cuidaram de eliminar sistematicamente populações inteiras de muçulmanos.

Fica fora de esquadro falar em genocídio de russos contra ucranianos. Os dois povos compartilham a história e a religião; falam línguas muito próximas; têm entrelaçamento familiar: grande parte dos ucranianos têm parentes russos e vice-versa. Difícil mesmo é encontrar russos ou ucranianos “de raça pura”.

Pode até ser que, lá no fundo da cabeça de Putin, esteja a ideia de “cancelar” o povo ucraniano, talvez até de partir para a eliminação física. No entanto, enquanto isso não for comprovado, não convém usar o termo genocídio. Que se diga crime de guerra, expressão que não será contestada por ninguém.

Baseada no que aconteceu em Butcha, a acusação de genocídio tem pouca chance de ser recebida pelo Tribunal Penal Internacional.

Atrocidade, brutalidade, crueldade, barbaridade, massacre, selvajaria, bestialidade, desumanidade são termos de bom tamanho. Exprimem julgamento de valor e não entram em colisão com nenhuma definição oficial.