Juridiquês cá e lá

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Primeiro foi:
“Sou inocente.”

Depois foi:
“Errar é humano.”

Agora é:
“Não houve ilegalidade alguma e, se ilegalidade houve, não houve dolo.”

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Ao saber dessa última forma de defesa entregue ao Senado pelo advogado da presidente afastada, não pude deixar de lembrar de um episódio ocorrido com meu pai há mais de meio século.

Meu pai era um homem extremamente supersticioso. Mineiro, tinha mil e uma manias, todas desenvolvidas desde menino como modo de se proteger de má sorte, inveja ou mau olhado. A coisa era tão complexa e multifacetada que, quando não sabia bem como explicar a razão de algum procedimento esdrúxulo, ele argumentava em tom de brincadeira que “corro o risco de meu filho nascer sem dentes e sem cabelos”. Dentre elas, uma se destacava: carregava consigo, no bolso da calça, por onde fosse, uma figa.

Anhangabau 1Certo dia, a caminho do trabalho no centro da cidade, ele se preparava para atravessar o Viaduto do Chá, bem em frente ao atual prédio da prefeitura paulistana. Cuidadoso como sempre, ele olhou para os dois lados e, não tendo detectado nenhum sinal de perigo, desceu da calçada. Apressou o passo, mas não conseguiu terminar a travessia. Foi atropelado no meio da pista por um ônibus que trafegava pela contramão e acima da velocidade permitida. Certamente, contava ele, o motorista do coletivo devia ser um novato em treinamento que, ao se dar conta de que havia feito uma conversão errada, havia acelerado para escapar do flagrante e voltar ao trajeto habitual.

Um detalhe tragicômico, ao qual, diga-se de passagem, ele nunca fez menção: atada por uma corrente de ferro ao para-choque do veículo, havia uma imensa e pesada figa de metal. Com o movimento brusco de freada, a figa oscilou violentamente e atingiu meu pai na lateral da cabeça, provocando um afundamento significativo do crânio – talvez a lesão mais preocupante entre todas.

Figa 1Socorrido por passantes, ele foi levado ao hospital. Havia quebrado várias costelas, uma das vértebras do pescoço, o braço direito e a clavícula do lado esquerdo. Passou vários dias internado e, quando voltou para casa, a família foi obrigada a enfrentar longos quatro meses de cuidados especiais: dando comida na boca, ajudando-o a se sentar e se levantar e se responsabilizando por toda sua rotina de higiene pessoal, já que os dois braços engessados e o pescoço imobilizado o impediam de exercer qualquer uma dessas atividades.

O trabalho também, é claro, foi prejudicado. Teve de se afastar temporariamente do cargo. O ócio e as longas horas sentado em casa logo o deixaram transtornado. Desenvolveu depressão, insônia, ansiedade, irritação e, consequentemente, problemas digestivos. Obcecado com a ideia de retomar sua autonomia no trabalho e como chefe da casa, ele decidiu processar a companhia de ônibus.

Onibus 8Naquela época, não havia serviço especializado de ambulância para atender emergências. Ninguém havia pensado em anotar o nome das pessoas que o haviam ajudado a se levantar. Mesmo sem testemunhas que corroborassem sua tese de que o ônibus estava fora de rota e acima da velocidade permitida, ele foi em frente com o processo.

Alguns anos mais tarde, saiu a sentença definitiva: o juiz havia dado ganho de causa à empresa de ônibus, impressionado talvez com a surreal argumentação com que o departamento jurídico havia apresentado sua defesa. Anexada aos autos, lá estava escrito com todas as letras para a eventualidade de que alguém ousasse duvidar da total inocência da companhia: “…não havia nenhum veículo de nossa empresa circulando por aquele local, naquela hora, e, se houvesse, não havia motorista a bordo”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

As malandragens de lá e as de cá

José Horta Manzano

Em todo país civilizado, leis votadas pelo parlamento têm de ser sancionadas pelo chefe do Estado. Em muitos países, o Estado é chefiado por um presidente. No reino da Bélgica, o rei é o chefe do Estado. Uma nova lei só passa a valer depois de assinada por ele.

Em 1990, por lá reinava o mui católico Balduino I, fervoroso praticante de sua religião. O parlamento do país, após anos de debates, acabava de aprovar uma lei autorizando o aborto sob certas condições.

Rei Balduíno da Bélgica

Rei Balduíno da Bélgica

O rei, diametralmente oposto a essa resolução, recusou-se a sancionar o texto e pediu ao Primeiro-Ministro que encontrasse uma saída legal para o impasse. Uma solução que conciliasse as convicções íntimas do soberano com o anseio dos cidadãos.

O jeito foi recorrer a um artigo constitucional raramente invocado. O Conselho de Ministros constatou que o rei se encontrava na impossibilidade de exercer suas funções. Seus poderes foram então transferidos ao Primeiro-Ministro, que sancionou a lei controversa. Pouco tempo depois, o rei foi declarado apto a reinar. E voltou ao trono.

Há quem discuta até hoje se o recurso a esse subterfúgio foi realmente legal. No fundo, no fundo, não foi. O espírito do legislador ao incluir aquele artigo na Constituição do país tinha em mira um eventual afastamento físico do rei ― uma longa viagem, por exemplo ―, ou um caso de doença.

Seja como for, o rei mostrou ser um homem de convicções, um espírito reto. Embora apegado a princípios um tanto démodés, Balduíno era homem de elevada estatura moral.

Esse episódio, longe de causar celeuma, rendeu-lhe admiração e respeito. Sua popularidade cresceu vertiginosamente entre os súditos.

Interligne 34e
Um acontecimento que lembra o caso de Balduíno teve lugar estes dias no Brasil. Nestes tempos estranhos em que estádios passam a chamar-se arenas, o caso passou praticamente despercebido.

Assim mesmo, jornais têm falado de um obscuro senhor Afif, homem político que, no limite da legalidade, carrega dois chapéus. Sem a menor cerimônia, apresenta-se como vice-governador do Estado de São Paulo ou como 39° Ministro da República, ao sabor das circunstâncias.

Com o coração empedrado pelos contínuos escândalos que têm sacudido a República estes últimos 10 anos, os brasileiros não deram muita atenção ao fato. Perto de tantas revelações mais escabrosas, essa duplicidade de funções concentradas num só indivíduo não é de fazer corar ninguém.

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Mas a lei não autoriza essa farra. Nosso amigo terá de escolher, mais dia, menos dia, se usa este boné ou aquele. Não será possível continuar muito tempo cavalgando duas montarias.

Edificante reportagem do Estadão de 8 de junho nos informa que o senhor Afif agiu como o rei Balduíno. Surpreendido pela perspectiva de uma repentina ausência do governador, que se preparava para uma viagem ao exterior, tinha de assumir suas funções de vice. Mas só poderia fazê-lo se renunciasse ao cargo de ministro. Que fazer?

Uma saída à belga foi encontrada. Publicou-se às pressas uma edição extra do Diário Oficial ― à custa do contribuinte, evidentemente ― para anunciar a demissão do ministro. Isso abriu-lhe o caminho para assumir o posto de vice.

É verdade que lembra o caso de Balduíno. Mas, convenhamos, a motivação do senhor Afif é ― sejamos comedidos ― menos nobre.