Le casse du siècle

José Horta Manzano

Na manhã da segunda-feira 19 de julho de 1976, os funcionários da agência de Nice (França) do Banco Société Générale ficaram intrigados. Quando o encarregado foi ao subterrâneo buscar dinheiro para distribuir aos caixas antes da abertura ao público, constatou que a pesada porta de aço blindado da sala dos cofres não se abria. Tenta daqui, tenta dali, e nada. Chamaram ajuda externa.

Serralheiros tampouco lograram destravar a blindagem. Foi preciso chamar reforço e arrombar a porta. Ao penetrar no salão, deram-se conta de que a porta havia sido soldada por dentro. Olhando entorno, contemplaram um espetáculo desolador: 371 cofres de clientes haviam sido arrombados e pilhados. Pior que isso, a porta que dava para o cofre central da agência estava aberta e, no lugar do compartimento blindado, havia um enorme buraco.

Passado o primeiro momento de estupor, caíram na real: o banco havia sido assaltado durante o fim de semana. Feitas as contas, chegou-se a uma estimativa do valor subtraído. Tinham desaparecido quarenta e seis milhões de francos da época, equivalentes a 30 milhões de euros atuais (150 milhões de reais).

Agência de banco assaltada

Na verdade, nunca se conhecerá o valor exato, dado que clientes costumam armazenar valores cuja existência preferem dissimular do fisco. Estava consumado «le casse du siècle» ‒ o assalto do século. Nem um centavo dos valores roubados foi recuperado até hoje. Ficou famosa a frase que os malfeitores deixaram escrita a giz na parede: «Ni coup de feu, ni violence, ni haine» ‒ nem tiro, nem violência, nem ódio.

Toda a força policial da França arregaçou as mangas pra descobrir os autores. Um assalto daquela envergadura não era obra de uma pessoa só. Uma equipe robusta e aguerrida tinha de estar por detrás. As investigações revelaram que os malfeitores, depois de descer pelas bocas de esgoto a uns 100m de distância, tinham levado três meses escavando um túnel. Tinham feito uso de material sofisticado levado ao local peça por peça pra não despertar suspeita.

Foram logo apanhados três ou quatro indivíduos, velhos conhecidos da polícia. Confessaram ter feito parte da turma dos tatus, mas eram arraia miúda. O que se procurava mesmo era o cérebro do bando. Descobriram que seria um tal de Monsieur Spaggiari, notório integrante da bandidagem. Encontrado, foi preso e acusado. Seis meses mais tarde, durante um interrogatório, o homem conseguiu escapulir. Peregrinou durante anos por França, Oropa e Bahia. Até pelo Brasil, o homem passou. Jamais recapturado, faleceu em 1989.

A façanha rendeu três filmes, mas a busca pelos malfeitores, passados tantos anos, foi aos poucos abandonada. Quase quarenta anos mais tarde, é lançado um livro em que o escritor se denuncia e confessa ser o verdadeiro chefe do bando, o autor intelectual. A obra foi escrita sob pseudônimo mas, em casos assim, a justiça tem direito a conhecer quem se esconde por detrás. Não tardou a baterem à porta de um certo Monsieur Cassandri, que acabou detido e interrogado.

Seu advogado argumentou que o crime estava prescrito, razão pela qual o assaltante se tinha sentido livre pra confessar a façanha ao distinto público. De fato, pela lei francesa, o falastrão não pode mais ser processado pelo roubo. Só que não previram um detalhe: a lei não prevê prescrição para o crime de lavagem de dinheiro.

Trajeto da boca de esgoto até o banco

Monsieur Cassandri ‒ que não consta tenha jamais trabalhado na vida ‒ é homem rico. Nestes quarenta anos, saindo do nada, comprou, entre outras coisas, uma casa nos Alpes, um night-club em Marselha, numerosos terrenos na Córsega. Investiu ainda dezenas de milhares de euros em casacos de pele. Dado que os originais do livro foram encontrados em seu computador, o assaltante não teve como negar a autoria.

O resultado da vaidade foi pesado. Não só o autor do assalto como esposa, filhos e outros chegados estão sendo processados por lavagem de dinheiro. De fato, toda a família participou da festança. Atualmente, estão todos prestando contas à Justiça de Marselha. Vai ser difícil escaparem à mão pesada de desabusados juízes.

Moral da história:
Segredo é pra quatro paredes. Quem cometeu ‘malfeito’, o melhor é calar, que nunca se sabe. (Com perdão do anacoluto).

Texto publicado originalmente em 14 fev° 2018.

Le casse du siècle

José Horta Manzano

Na manhã da segunda-feira 19 de julho de 1976, os funcionários da agência de Nice (França) do Banco Société Générale ficaram intrigados. Quando o encarregado foi ao subterrâneo buscar dinheiro para distribuir aos caixas antes da abertura ao público, constatou que a pesada porta de aço blindado da sala dos cofres não se abria. Tenta daqui, tenta dali, e nada. Chamaram ajuda externa.

Serralheiros tampouco lograram destravar a blindagem. Foi preciso chamar reforço e arrombar a porta. Ao penetrar no salão, deram-se conta de que a porta havia sido soldada por dentro. Olhando entorno, contemplaram um espetáculo desolador: 371 cofres de clientes haviam sido arrombados e pilhados. Pior que isso, a porta que dava para o cofre central da agência estava aberta e, no lugar do compartimento blindado, havia um enorme buraco.

Passado o primeiro momento de estupor, caíram na real: o banco havia sido assaltado durante o fim de semana. Feitas as contas, chegou-se a uma estimativa do valor subtraído. Tinham desaparecido quarenta e seis milhões de francos da época, equivalentes a 30 milhões de euros atuais (100 milhões de reais).

Agência de banco assaltada

Na verdade, nunca se conhecerá o valor exato, dado que clientes costumam armazenar valores cuja existência preferem dissimular do fisco. Estava consumado «le casse du siècle» ‒ o assalto do século. Nem um centavo dos valores roubados foi recuperado até hoje. Ficou famosa a frase que os malfeitores deixaram escrita a giz na parede: «Ni coup de feu, ni violence, ni haine» ‒ nem tiro, nem violência, nem ódio.

Toda a força policial da França arregaçou as mangas pra descobrir os autores. Um assalto daquela envergadura não era obra de uma pessoa só. Uma equipe robusta e aguerrida tinha de estar por detrás. As investigações revelaram que os malfeitores, depois de descer pelas bocas de esgoto a uns 100m de distância, tinham levado três meses escavando um túnel. Tinham feito uso de material sofisticado levado ao local peça por peça pra não despertar suspeita.

Foram logo apanhados três ou quatro indivíduos, velhos conhecidos da polícia. Confessaram ter feito parte da turma dos tatus, mas eram arraia miúda. O que se procurava mesmo era o cérebro do bando. Descobriram que seria um tal de Monsieur Spaggiari, notório integrante da bandidagem. Encontrado, foi preso e acusado. Seis meses mais tarde, durante um interrogatório, o homem conseguiu escapulir. Peregrinou durante anos por França, Oropa e Bahia. Até pelo Brasil, o homem passou. Jamais recapturado, faleceu em 1989.

A façanha rendeu três filmes, mas a busca pelos malfeitores, passados tantos anos, foi aos poucos abandonada. Quase quarenta anos mais tarde, é lançado um livro em que o escritor se denuncia e revela ser o verdadeiro chefe do bando, o autor intelectual. A obra foi escrita sob pseudônimo mas, em casos assim, a justiça tem direito a conhecer quem se esconde por detrás. Não tardou a baterem à porta de um certo Monsieur Cassandri, que acabou detido e interrogado.

Seu advogado argumentou que o crime estava prescrito, razão pela qual o assaltante se tinha sentido livre pra confessar a façanha ao distinto público. De fato, pela lei francesa, o falastrão não pode mais ser processado pelo roubo. Só que não previram um detalhe: a lei não prevê prescrição para o crime de lavagem de dinheiro.

Trajeto da boca de esgoto até o banco

Monsieur Cassandri ‒ que não consta tenha jamais trabalhado na vida ‒ é homem rico. Nestes quarenta anos, saindo do nada, comprou, entre outras coisas, uma casa nos Alpes, um night-club em Marselha, numerosos terrenos na Córsega. Investiu ainda dezenas de milhares de euros em casacos de pele. Dado que os originais do livro foram encontrados em seu computador, o assaltante não teve como negar a autoria.

O resultado da vaidade foi pesado. Não só o autor do assalto como esposa, filhos e outros chegados estão sendo processados por lavagem de dinheiro. De fato, toda a família participou da festança. Atualmente, estão todos prestando contas à Justiça de Marselha. Vai ser difícil escaparem à mão pesada de desabusados juízes.

Moral da história:
Segredo é pra quatro paredes. Não vale a pena vangloriar-se desse tipo de proeza ‒ nunca se sabe.

Cum fovet fortuna, cave, namque rota rotunda
Quando a fortuna te favorece, tem cuidado porque a roda gira.

Lá como cá

José Horta Manzano

A cidade de Bruges fica na provícia de Flandres Ocidental, no norte da Bélgica. Seus canais lembram uma ultraconhecida cidade italiana, daí seu apelido de Veneza do Norte. Na região fala-se flamengo, um dos dialetos do holandês. Cá entre nós, holandês é apenas o nome popular do idioma. Quem quiser se exprimir corretamente e impressionar diga neerlandês.

Aliás, o verdadeiro nome da língua é, realmente, neerlandês. Holanda do Norte e Holanda do Sul (Noord-Holland e Zuid-Holland) são duas das doze províncias que compõem o Reino dos Países Baixos. São as mais importantes, é verdade, mas não as únicas. Dizer que a língua do país é o holandês equivale a dizer que os brasileiros falam carioca. É inapropriado.

Na periferia de Bruges fica a cidadezinha de Zedelgem, pouco mais de 20 mil habitantes, um daqueles lugares pacatos, onde pouca coisa acontece. A vila é mais conhecida por seu edifício medieval, o lindíssimo Castelo de Baesveld. A quem interessar possa: o monumento pode ser alugado para casamentos e outras celebrações. Informações na prefeitura.

Castelo de Baesfeld, Bélgica Crédito: belgiumview.com

Castelo de Baesfeld, Bélgica
Crédito: belgiumview.com

Algo fora do comum aconteceu estes dias no tranquilo vilarejo. Caiu uma chuva de dinheiro. Nada de sobrenatural, vou contar-lhes como ocorreu. Deu na televisão.

Um assalto ― coisa rara naquelas bandas ― deu errado. Malfeitores se apoderaram de dois cofres-fortes e os embarcaram num furgão. Assim que se puseram a escapar do lugar do crime, perceberam que estavam sendo seguidos pela polícia.

Para atrapalhar os que os perseguiam, atiraram um dos cofres no meio da rua, com o carro em movimento. Com o choque, a caixa-forte se partiu e uma chuva de notas atapetou a rua principal. Notas verdes de 100 euros caindo do céu? A Bélgica é país chuvoso, por certo, mas em princípio o que costuma cair é água fria. A população nunca tinha assistido a espetáculo tão fascinante.

A Bélgica não é conhecida por abrigar gente desonesta, mas, sacumé, a ocasião faz o ladrão. Quem pôde, saiu à rua para catar nem que fosse algumas notas. Parece até que uma distinta senhora chegou ao local empunhando uma vassoura, para racionalizar e apressar a preciosa colheita antes que algum aventureiro lançasse mão.Ladrão

A polícia conseguiu recuperar boa parte do butim, assim mesmo faltava meio milhão de euros. O prefeito do lugarejo, cioso da fama de honestidade de seus governados, teve uma ideia: mandou instalar uma espécie de caixa de cartas onde cidadãos arrependidos poderiam inserir, de forma anônima, as cédulas surrupiadas.

A emenda saiu pior que o soneto. Na calada da noite, outros ladrões vieram e levaram… a caixa de cartas. Com seu conteúdo, naturalmente.

Lá como cá…