Quem inventou a baguete?

José Horta Manzano

Você sabia?

Aquele pão comprido, crocante e de pouco miolo, que os franceses chamam “baguette” (baguete), está tão ligado ao patrimônio cultural da França, que a gente imagina que deva ser tradição antiga, velha de muitos séculos. Engano. A baguete é criação relativamente recente. As primeiras foram assadas faz 100 anos.

A baguete nasceu com o inchaço das cidades, que se verificou a partir do fim do século 19. A multiplicação das indústrias, geralmente localizadas na periferia das cidades maiores, fez surgir uma nova casta de cidadãos enriquecidos: os donos das fábricas.

Essa classe de novos-ricos já não se satisfazia com o pão tal como era feito tradicionalmente, em formato redondo, denso, cada bolota pesando de um quilo e meio a dois quilos. Durava uma semana, mas perdia o viço, amolecia por fora e secava por dentro. Já que tinham dinheiro e podiam pagar, os membros das classes urbanas enricadas queriam pão fresco e crocante no almoço e, de novo, no jantar.(*)

Uma lei de 1919, querendo proteger os padeiros, proibiu o trabalho noturno na profissão. Ora, o pão sempre foi amassado durante a noite e assado de madrugada para ser posto à venda de manhã logo cedo. Além disso, a panificação era tradicionalmente feita com fermento natural – que dá sabor especial ao pão, mas demanda trabalho e muita paciência.

Para resolver o problema, os padeiros parisienses decidiram abandonar o fermento natural e substitui-lo pelo fermento que conhecemos como biológico (ou Fleischmann), aquele de tabletinho que se guarda na geladeira, ou que também se encontra granulado, em sachê. O gosto e a textura do produto final mudavam bastante; em compensação a crosta ficava mais crocante, e o principal: a preparação era bem mais rápida e dispensava o trabalho noturno.

Para diminuir ainda mais o tempo de cozimento, a forma (ó) redonda foi abandonada e deu lugar ao formato comprido que conhecemos. O sucesso foi imediato.

Só que os tempos eram duros. Não é qualquer francês que podia se dar ao luxo de comprar pão duas vezes por dia. As classes menos favorecidas continuaram privilegiando o tradicional pão redondo, pesadão e de tamanho familiar.

Foi preciso esperar que o tempo passasse. Em 1945, terminada a guerra, a produção foi se regularizando e o racionamento de gêneros alimentícios foi pouco a pouco desaparecendo. Só então a baguete ganhou impulso, se popularizou e se espalhou pela França inteira.

No Brasil da minha infância, não se usava o termo baguete – isso é novidade das últimas décadas. A gente dizia “um filão” para designar um pão comprido, porém de diâmetro mais gordo. E “uma bengala” pra indicar aquele mais fininho. Não sei se alguém ainda fala assim.

(*) Até hoje, boa parte das famílias francesas não come, no jantar, o pão do almoço. Compram duas vezes por dia. Quem vive em cidade, vai até a padaria. Quem vive em vilarejo, compra do padeiro itinerante, que passa duas vezes por dia. Famílias pequenas compram meia baguete ao meio-dia e, de novo, meia baguette ao entardecer. Curioso costume, não?

Baú de memórias ‒ 2

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma vez aberto, meu baú de memórias se recusa a ser fechado de novo. Desta vez, as recordações que inundam minha mente dizem respeito a uma experiência tragicômica vivida em família.

Meus avós paternos tiveram 15 filhos biológicos e adotaram outros 17. Meu avô era um rico e pacato fazendeiro de Minas Gerais e espaço não era propriamente o que faltava, nem em suas terras, nem em seu coração. Não é preciso muito esforço de imaginação, no entanto, para prever os infinitos problemas do cotidiano que ele e minha avó tiveram de administrar para cuidar de 32 filhos.

Na adolescência, como era previsível e inevitável, a convivência íntima acabou funcionando como combustível para que alguns filhos biológicos se apaixonassem por seus irmãos adotivos, ou vice-versa. Os mais determinados e rebeldes ignoraram a falta de benção do patriarca e se casaram. Logo a família crescia em ritmo exponencial.

filharada-1Quando, em 1929, explodiu o ‘crack’ da bolsa de Nova Iorque, a única saída que meus avós visualizaram para continuar mantendo com dignidade uma família tão extensa foi a de enviar os filhos mais velhos para trabalhar em São Paulo. Meu pai foi um deles. Aqui se profissionalizou e formou família. Só voltava à casa dos pais nas férias, levando consigo os 5 filhos.

Vivendo e estudando em São Paulo, eu não tinha como me manter em dia com os acontecimentos do ramo mineiro da família. Já não sabia quem tinha nascido, morrido ou casado e já não me lembrava mais quem era filho ou irmão de quem.

Certo dia, já adulta, recebi a notícia de que minha madrinha de batismo havia morrido. Como, na época, meus pais já estavam separados, minha mãe pediu que eu fosse dar a notícia a meu pai em seu novo endereço. Imaginando que o único vínculo que ligava minha madrinha a ele era o fato de ela ser casada com um tio adotivo, não me preocupei em tomar precauções especiais ao dar ciência do ocorrido. Ao ouvir a notícia, meu pai cambaleou, levou a mão ao peito como se estivesse tendo um infarto e, sem ar, disse chocado: “Você está dizendo que minha irmã morreu??”

Para meu supremo espanto, só descobri naquele segundo que ambos, minha madrinha e seu marido, eram na verdade irmãos adotivos de meu pai. Era tarde demais para fazer alguma coisa. Consolei-o como pude e o levei ao cemitério. Lá, uma multidão de parentes mineiros nos aguardava. Meu pai, ainda muito abatido, sentou-se a meu lado num banco do lado de fora da capela. Permaneceu calado a maior parte do tempo, limitando-se a me abraçar e segurar minha mão. Quando chegou a hora de fechar o caixão, ele levantou-se e perdeu-se em meio ao tumulto que se formou.

Foi quando um desconhecido se aproximou de mim e, com um ar entre curioso e lascivo, deu início a um verdadeiro interrogatório. Nome, idade, profissão, local de residência, nada escapou. Mesmo pressupondo que se tratasse de um amigo da família, eu me esquivava como podia das respostas, já que a tentativa de intimidade forçada só fazia aumentar minha irritação.

cimetiere-1Quando já me preparava para levantar e me afastar dele, veio a última pergunta que esclareceria de vez todo aquele imbróglio: “Desde quando você conhece o Oswaldo? ”. Sem entender o propósito de uma pergunta tão sem pé nem cabeça, respondi de mau humor: “Desde o dia em que nasci, oras!”. Totalmente constrangido, o rapaz abaixou a cabeça, levantou e foi embora.

Na volta para casa, perguntei se meu pai sabia quem era ele. Resumo da ópera: o jovem impertinente era um dos tantos primos que eu não conhecia. Ao testemunhar a forma afetuosa e íntima com que meu pai me tratava, ele simplesmente havia imaginado que eu fosse sua namorada atual.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.