Fique esperto!

José Horta Manzano

Este escriba é do tempo em que produtos alimentícios não eram etiquetados com data de validade. Nenhum artigo tinha data, nem mesmo garrafas de leite fresco. E como é que se fazia pra sobreviver sem se envenenar neste mundo tão cheio de perigos?

Pra começar, o mundo era menos perigoso, pelo menos é a lembrança que guardo. Por seu lado, visto que nunca ninguém tinha ouvido falar de etiqueta de validade, estávamos todos preparados pra resolver esse tipo de problema com nossos próprios meios.

Peixe no mercado ou na feira? Um rápido exame do olho do bicho nos indicava se era fresco ou se já começava a passar. Frutas e legumes? Um exame visual também era suficiente. Congelados? Não havia. De todo modo, ninguém tinha congelador. Leite, manteiga, queijo? Quem detectava o estado do artigo era o nariz do freguês. Uma cheirada bastava para dar o veredicto. Em vez de etiqueta com data, tínhamos o conhecimento familiar, transmitido de mãe para filha (e de pai para filho também).

Desde que a data de vencimento passou a ser indicada nos produtos, esses reflexos antigos começaram a se perder. Hoje a gente vai buscar os óculos, torce o pescoço e vira a embalagem de todos os lados até encontrar a data. A ninguém mais ocorre recorrer aos métodos antigos. Talvez o conhecimento milenar legado de geração em geração desde o tempo das cavernas, esteja se perdendo, atropelado pela comodidade da etiqueta de validade, que nada mais é que um nariz alheio cheirando nossa comida.


O planeta anda desacorçoado porque aquele bilionário cujo nome lembra um pão de açúcar, dono de Facebook e Instagram, decidiu abolir, ou pelo menos afrouxar, a restrição de notícias falsas que circularem por suas redes. Muita tinta tem sido gasta em comentários e catastróficas previsões sobre o futuro das redes. Sobreviverão, perguntam-se muitos, ou a rede vai virar uma cacofonia dos diabos, um imenso mercado persa em que todos gritam e ninguém se entende?

Olhe, com ou sem controle de “fake news”, eu diria que o ambiente já é caótico, um universo onde a gritaria é tanta que acaba impedindo a circulação da boa informação.

Muitos dos que estão há tempos mergulhados nesse universo sobreviveram até hoje e já provaram ser capazes de viver na tormenta, com mar revolto e ondas gigantescas. Para esses, a eliminação da censura prévia não fará quente nem frio. De toda maneira, sabiam se virar sozinhos.

Para os que se sentirem perdidos, meu conselho é adotarem o sistema da vovó. Não é complicado, é mais ou menos como expliquei nos primeiros parágrafos. Já que vão eliminar todas as etiquetas de validade, o que nos resta é sopesar cada pedaço de informação e só então aceitar ou rejeitar. É bom se desacostumar a engolir como verdade absoluta tudo o que vem escrito.

O novo esquema nos tira uma comodidade (o material não vem mais depurado de vícios e inverdades) porém nos abre largas possibilidades de desenvolver nosso espírito crítico. Agora podemos julgar por nós mesmos, situação que faz bem ao espírito.

No começo, não vai ser fácil. Uma vez passado o tempo de aprendizado, vai ficando mais fácil distinguir o verdadeiro do falso. No fundo, se os frequentadores das redes aproveitarem a oportunidade para aprender a mastigar a própria comida, o clima de liberou geral das redes terá sido uma dádiva.

Obrigado, Mr. Musk, Mr. Pão de Açúcar e quem mais vier!

Aporofobia

José Horta Manzano


Doutora Adela Cortina (1947-) é uma filósofa espanhola. Na década de 1990, cunhou o conceito de aporofobia para referir-se ao ódio e repúdio à pobreza e aos pobres.


A aporofobia inclui ainda a animosidade, hostilidade e aversão a todos os indicadores de pobreza: bairros carentes, pessoas sem-teto, refugiados, migrantes.

Em sociedades em que diferenças socio-econômicas são quase imperceptíveis, a aporofobia não costuma vicejar. Por seu lado, sociedades como a nossa, com abissais desigualdades, são terreno fértil para a germinação desse ódio.

Nosso desequilíbrio social é tão fecundo que a aporofobia aqui se aclimata e se alastra. O conceito se amplia e se exprime através do ódio racial, religioso e até político.

Foi esse terreno fértil que permitiu o surgimento de um Bolsonaro – aporófobo de primeira – que soube desinibir parte da população e dar a seus devotos a oportunidade de exprimir publicamente suas aversões. Em linguagem clara, aporófobos que costumavam reprimir sua tendência soltaram a franga. Romperam as amarras.

O capitão, que hoje defende a ampliação de benefícios sociais, é o mesmo que, no ano 2000, declarou ter orgulho de se opor a programas de redistribuição de renda, argumentando que deveriam estar associados ao controle da natalidade. Uma visão eugenista da sociedade, com relentos de esterilização forçada. “Se a população pobre deixar de procriar, em breve desaparecerá” – é a lógica que sua mente simplória lhe permitiu conceber.

O empresário periquito
Aquele conhecido empresário amigo do presidente, um baixinho de coco rapado que sempre aparece fantasiado de Zé Carioca, acaba de perder um processo. No mês de maio passado, andou fazendo comentários públicos contra o padre Júlio Lancellotti, ao vê-lo distribuir alimento a moradores de rua que tinham de enfrentar as noites geladas de São Paulo.

“É da turma do Lula. Hipocrisia pura. Temos que ensinar a pescar, e não dar o peixe. Cada dia que passa é mais malandro vivendo nas costas de quem trabalha”, foi o que o periquito escreveu. E continuou: “Quem defende bandido, bandido é”.

Ferido em sua dignidade diante de tamanha petulância, o religioso moveu um processo pedindo reparação. Venceu a causa.

Esse é o tipo de personagem a quem o capitão abriu a porteira. Como esse periquito, há milhões de papagaios que se sentem alforriados para exprimir seus baixos sentimentos.

Ódio, repúdio, hostilidade, aversão, antipatia, enjeitamento, repelência, repulsão, ojeriza & sentimentos afins não precisam mais ser guardados na gaveta. Podem ser expressos por escrito e à luz do dia. Ninguém mais parece se escandalizar.

O mal que Bolsonaro tem feito ao país ainda está para ser contabilizado. Vai ser difícil fechar a porteira que ele escancarou.

Olimpíadas camponesas

José Horta Manzano

Nos tempos de antigamente, quando a vida era ritmada pelos trabalhos do campo, a colheita era o ponto culminante. Por essa ocasião, em sinal de regozijo, organizavam-se jogos e festas, com danças, comes e bebes.

Com o inchaço das cidades e o correspondente esvaziamento do campo, as festas de antanho perduram, mas com outro significado. Não mais representam o júbilo do camponês cujo trabalho foi coroado com uma boa colheita. São agora atração turística desconectada do sentido antigo, mas sempre animadas.

Saint-Oyens

Em matéria de jogos e festas, a imaginação humana não tem limites. Dependendo do lugar, há corrida de caramujos, batalha de tomates, combate de lanceiros montados, concurso de danças e trajes típicos ‒ de tudo um pouco.

Nas regiões montanhosas da Suíça, os invernos são longos e rudes. Seis meses por ano, quando não há pasto, o gado vive confinado no estábulo. Nesse período, é alimentado com palha colhida no fim do verão, posta a secar e armazenada em fardos. Conservado ao abrigo da umidade, esse feno vai garantir o sustento dos animais até a volta da primavera.

O povoado de Saint-Oyens (366 habitantes) é pobre. Suas poucas dezenas de cabeças de gado leiteiro são alimentadas, no inverno, com palha colhida no fim do verão. O vilarejo guarda uma tradição peculiar: os jogos que celebram a colheita utilizam fardos de palha seca.

Esporte camponês

Escolhe-se um fardo de exatos 15kg. A competição consiste em lançá-lo o mais longe possível. Um certo Sébastien Debonneville detém o recorde absoluto, imbatido há diversos anos: 7 metros ‒ um prodígio!

O concurso, cuja recompensa única são os aplausos do público presente, é aberto a todos. Nos primeiros minutos, só os habitantes do povoado se arriscam. Passado o primeiro susto, vêm os primeiros goles de vinho brando e os forasteiros vão se desinibindo.

Este ano, o concorrente que atirou mais longe o fardo de feno alcançou 6 metros, bem longe do recorde. Se o distinto leitor quiser se candidatar, é só passar, que é bem-vindo. Não precisa se inscrever. Não precisa de endereço, que o vilarejo é pequeno. Basta procurar no google.