Orient Express

José Horta Manzano

Você sabia?

SMT = Shanghai Maglev Train (trem de levitação magnética)

SMT = Shanghai Maglev Train
(trem de levitação magnética)

O mui oficial jornal Beijing Times, controlado pelo Estado chinês, anunciou um projeto pra lá de ousado. Trata-se da construção de uma linha de trem de alta velocidade (trem-bala) entre a China e os Estados Unidos.

Prevê-se que a extensão seja de 13 mil quilômetros. Para efeito de comparação, note-se que a distância entre o extremo leste e o extremo oeste do Brasil é de 4300 quilômetros. A linha deverá sair do nordeste da China e cruzar boa parte do território russo.

Para passar da Ásia à América, é preciso vencer o Estreito de Bering. A escavação de um túnel submarino de 200 km deverá resolver o problema. Para dar-lhe ideia da complexidade da obra, tenha presente que, atualmente, o túnel ferroviário entre a França e a Grã-Bretanha é o que tem o trecho submerso mais longo do mundo: 37 km.

No Novo Mundo, o Alasca e o Canadá inteiros ainda terão de ser atravessados antes da chegada ao terminal em Nova York. Numa hipótese optimista, um trem lançado a uma velocidade média de 350 km/h levará dois dias e uma noite para fazer o percurso. Sem contar as paradas.

O não menos oficial China Daily, outro braço do Estado chinês, confirma a existência do projeto e vai mais longe. Afirma que a tecnologia para construir a gigantesca obra já está disponível.

Nenhum dos periódicos informou se já combinaram com os russos ― no sentido literal. Com os russos, com os canadenses e com os americanos, naturalmente.

Esquema da linha ferroviária projetada

Esboço do percurso projetado

Aqui no meu cantinho, fico cismado. Não vejo a lógica que possa levar viajantes a preferir passar 48 horas confinados num trem para cumprir um trajeto que, de avião, demanda 12 horas.

Pessoalmente, já cheguei a fazer, décadas atrás, uma viagem de 48 horas de trem. A razão foi uma só: falta de dinheiro para usar meio de transporte mais rápido. Posso confirmar que é duro ficar sentado naquela poltrona durante dois dias e duas noites. Dormir sentado, comer farofa de casa ou gororoba de trem, aguentar ronco de vizinho podem ser atividades excitantes para os muito jovens. Para os que já não têm mais 20 anos, é menos entusiasmante.

O projeto é delirante. Como não me consta que a China dê ponto sem nó, uma razão há de haver por detrás desse anúncio. Poderia perfeitamente ser uma jogada de marketing. Para um país que pretende vender trens de alta velocidade ao estrangeiro, toda propaganda é bem-vinda.

É como propaganda eleitoral gratuita: não custa nada e pode render muito.(*)

Interligne 18b

(*) Propaganda eleitoral gratuita não custa nada? É relativo. Todos sabem que não há almoço grátis ― alguém terá sempre de pagar a conta. No caso da propaganda eleitoral, se o dinheiro não sair do bolso do candidato, da mídia é que não sairá. Quem paga então? Ora, caro leitor, ao fim e ao cabo, sai do seu, do nosso bolso.

O trem-bala 2

José Horta Manzano

Leio hoje na Folha de São Paulo que ― oh, surpresa! ― firmas que se candidatam a realizar obras públicas de grande envergadura costumam se organizar em cartéis.

Todo o mundo está careca de saber disso. No mundo inteiro, todas as licitações são viciadas. Sejam elas para a coleta de lixo ou para a construção de grandes obras. Faz parte do negócio.

Um amigo ― cuja firma participou, faz muitos anos, de licitações públicas ― me contou como funciona o esquema. As empresas postulantes formam um cartel: são sempre as mesmas. Trabalham numa espécie de rodízio. Quando aparece um negócio novo, os dirigentes decidem entre eles quem vai levar o contrato.

A firma da vez calcula seus custos, acrescenta o percentual que lhe parece interessante, e comunica o resultado aos parceiros. Todos, então, apresentam proposta com preço superior ao do concorrente designado para ganhar. E, naturalmente, ele ganha. Na próxima obra, será a vez de um outro membro do cartel. E assim por diante.

É assim que funciona, lá e cá. E tem mais: é um clube fechado, não entra quem quer. Algum aventureiro pode até tentar furar o bloqueio fazendo um preço baixinho. Mas será a primeira e a última vez. A partir daí, os membros tradicionais do clube se unirão para derrubá-lo. Podem chegar a praticar dumping, apresentando propostas abaixo do preço de custo. (Depois, se arranjam entre eles para ratear o prejuízo.) Farão isso até que o intruso caia fora. Engenhoso, não é?

Mas não é disso que eu queria falar. O que mais me surpreendeu na reportagem da Folha foi a confirmação de que o grotesco projeto do trem-bala, que eu imaginava enterrado para todo o sempre, continua em pauta. Parece até que o leilão terá lugar no mês que vem.

Encrenca à vista, é certeza. Depois da grita suscitada pelo desperdício de dinheiro do contribuinte com a construção de estádios, é temeridade insistir nessa miragem de trem de alta velocidade. Trem de alta inutilidade seria melhor dito.

A malha ferroviária brasileira conta com 29’700km de linhas, das quais 80% de bitola estreita (1000mm), fora dos padrões internacionais. A maior parte da rede está em estado avançado de obsolescência e já não permite transporte de passageiros. Sobrevive de transporte de carga.

A malha ferroviária francesa conta com 29’300km de linhas, quase todas de bitola larga de padrão internacional (1435mm). A extensão da rede francesa é a mesma da brasileira, mas há que levar em conta que nosso território é 16 vezes maior que o deles.

Desastre de trem Brétigny-sur-Orge, França

Desastre de trem
Brétigny-sur-Orge, França 

A França conta com 2050km de linhas de alta velocidade. Nestes últimos 10 ou 15 anos, tem-se dado mais atenção à criação de novas linhas de trem-bala do que à manutenção das linhas tradicionais. Orçamentos, evidentemente, não são extensíveis. Se se usa o dinheiro para isto, não sobrará para aquilo.

O fato é que, por falta de verba, as linhas tradicionais estão sendo menos cuidadas do que deveriam. Dá para entender: a inauguração de um novo trecho de alta velocidade é impactante e traz eleitores. Já a boa manutenção da malha existente, praticamente invisível, rende menos em matéria eleitoral. Daí a escolha.

Ainda não está confirmado pelos especialistas, mas, no momento atual, tudo parece indicar que a catástrofe ferroviária de Bretigny-sur-Orge, ocorrida dois dias atrás, é fruto de falha na manutenção. Uma peça metálica que deveria ter sido trocada há anos continuava lá. Deu no que deu: um descarrilamento que deixou 6 mortos e dezenas de feridos.

Os mandachuvas brasileiros fariam melhor se abandonassem a ideia pirotécnica de trem-bala e dedicassem esses bilhões a recuperar a malha ferroviária existente. Trem é um dos meios de transporte mais seguros e mais confiáveis. Sai na hora certa e circula com chuva, vento, granizo, tempestade, neve, frio, calor, gelo. Sai do centro de uma cidade para chegar ao coração de uma outra. Carrega uma batelada de gente e não polui. Que mais precisa dizer?

Se o governo não entendeu isso, é porque estão de má-fé.

Interligne 18e