Orbis terrarum novissima tabula in Brasilia facta

Mapa-múndi de Nicolaes Visscher, 1658

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 25 abril 2024

No ano de 1658, o cartógrafo e editor holandês Nicolaes Visscher publicou um planisfério de sua autoria intitulado “Orbis terrarum nova et accuratissima tabula” – Mapa novo e exato do globo terrestre. O mapa, que mostra nossa Terra distribuída por dois hemisférios, é verdadeira obra de arte, com cenas mitológicas desenhadas nos quatro cantos da folha. Os dizeres são em latim, que ainda era a língua das obras sérias, não destinadas ao povão mas a um público culto.

É interessante notar que a porção de América do Sul que mais tarde viria a ser nosso país é a terra mais central do globo. Aparece em destaque, bem no meio do mundo. Europa e América do Norte se encontram distantes do meridiano central. É compreensível que Visscher tenha decidido retratar dessa maneira o mundo então conhecido. À época, muitas terras situadas na região do Oceano Pacífico ainda estavam por descobrir, o que possibilitou ao cartógrafo amputar parte do Japão e da Austrália, regiões mal conhecidas que acabaram ficando fora do mapa. Hoje, nenhum profissional sério faria mais isso.

Duas semanas atrás, o IBGE revelou ao grande público, com estrondo, sua mais recente façanha: um mapa-múndi que, enfim, coloca o Brasil no lugar que lhe é devido – no centro do mundo! Nas palavras de Doutor Pochmann, diretor do Instituto, o costume de desenhar o planisfério com o Meridiano de Greenwich no centro não passa de “projeto eurocentrista de modernidade ocidental”. São palavras panfletárias, distantes do processo científico. Na Ciência de verdade, projetos diferentes não se excluem, se complementam.

Assim mesmo, vamos admitir que o tal “projeto eurocentrista de modernidade ocidental” existe e que o Meridiano de Greenwich são suas impressões digitais. Ainda assim, será ingenuidade acreditar que o fato de o Brasil impor a seus estudantes um planisfério em que o meridiano central foi empurrado com o cotovelo vá influir nos desígnios do planeta. A Terra vai continuar a girar e o Meridiano de Greenwich continuará aparecendo no centro dos mapas-múndi que não forem impressos pelo IBGE. Eis aí o tipo de protesto naïf e inútil, que só vai servir para confundir a cabecinha de nossos estudantes, que terão mais dificuldade em entender por que razão esse meridiano foi escolhido para iniciar a contagem das 24 horas do dia.

O alvoroço gerado pela publicação do novíssimo Atlas Geográfico Escolar do IBGE destoa da seriedade do objeto. Um atlas é coleção de conhecimentos, uma enciclopédia sócio-geográfica que tem direito a ser lançada com a reverência e o recato que lhe são devidos.

Nosso cartógrafo holandês do século XVII até que tinha direito de omitir terras ainda não exploradas. Tinha também o direito de cortar as terras distantes e pouco conhecidas em dois pedaços, aparecendo um de cada lado do planisfério. Nosso IBGE, herdeiro de 150 anos de tradição de seriedade, não tem mais esse direito. Quando preparamos um mapa do Brasil, toda a atenção tem de estar focada no Brasil, evidentemente. Já quando desenhamos um mapa-múndi, nosso horizonte tem de se alargar. Além do Brasil, temos de cartografar também o resto do mundo. Se não temos capacidade de fazer isso certinho, é melhor desistir e importar planisférios já prontos.

O Novíssimo Atlas Escolar do IBGE peca em diversos aspectos. Com o deslocamento do Meridiano de Greenwich de 30 graus a leste, a Austrália aparece cortada em dois pedaços. A China e a Rússia idem. O mesmo vale para a Indonésia. Detalhe: como integrantes do G20, nenhum desses 4 países há de apreciar a travessura de nossa Novissima Tabula. Tem mais: o Canal da Mancha é descrito como “Estreito de Dover” enquanto o Estreito de Malaca aparece como “Estreito de Málaca”. Outra pérola: as Ilhas Falkland (Malvinas), território britânico, são unilateralmente atribuídas à Argentina.

Numa prova de inconsistência, a “arte de deslocar o Brasil para fazê-lo entrar à força no centro do mundo” não contaminou toda a coleção de mapas-múndi guardados no site do IBGE. De meia centena de planisférios, somente uma meia dúzia foram redesenhados conforme a novíssima versão. Os demais continuam mostrando Greenwich no centro do mapa. Parece que nem o IBGE acredita em sua própria mágica.

No centro do mundo não se entra pela janela nem pela porta dos fundos. Se um dia o Brasil chegar lá, terá que passar pela porta da frente. E ser recebido com dupla ala de guardas de honra, emplumados e engalanados.

Mateus, a brasa, a sardinha e o pirão

José Horta Manzano

Não dá pra escapar: todo ser humano acredita ser o centro do universo. Por mais que regras de boa educação ensinem que não é bem assim, não tem jeito: é da natureza humana.

Para reiterar essa convicção, toda língua tem uma coleção de expressões e frases feitas. Ao dizer que fulano “Puxou a brasa pra sua sardinha”, estamos confirmando que fulano – que se vê como centro do mundo – tomou posse do que ele acredita que lhe é de pleno direito.

Se alguém, depois de haver narrado um fato qualquer, soltar um comentário do tipo “Mateus, primeiro os teus”, estará lendo a mesma partitura. O mesmo vale para aquele que disser “Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. São variações em torno do mesmo tema. “Quem parte, reparte e não fica com a melhor parte, ou é bobo, ou não tem arte” é outro exemplar da coleção. Há mais.

No passado, já devo ter escrito sobre o mapa-múndi chinês. Mas vale a pena voltar ao assunto, que continua interessante.

Quem já viu um planisfério de estilo chinês há de ter se surpreendido. Não falo de um mapa fabricado na China para ser vendido por aqui; falo de um confeccionado na China para uso interno.

Um bom exemplo é o que aparece na ilustração logo mais acima. É o pano de fundo que se vê nos comunicados do Ministério de Assuntos Exteriores da China.

À primeira vista, mesmo um distraído repara: o mapa não está configurado do jeito que costumamos ver. O Oceano Atlântico, que a gente costuma ver no centro do planisfério, tem um triste fim: é partido em dois e relegado a cada uma das extremidades. Mais um pouquinho e transborda – aberração de dar calafrios a qualquer terraplanista. Os oceanos Índico e Pacífico estão mais para o meio e, centrado mesmo, o que aparece é o território chinês. Não é por nada que, em chinês, o nome do país se traduz por “Estado central” ou “Império do Meio”.

Como os demais habitantes do planeta, o chinês também se enxerga no centro do mundo. Pensando bem, eles estão certos. Como certos estão todos os outros. Por que é que eles desenhariam seu país na extremidade do globo? Na minha já longa existência, tirando uma única exceção, nunca ouvi falar de um dirigente que menosprezasse o próprio povo a ponto de mandá-lo pra escanteio (não só no mapa).

A exceção, o distinto leitor já adivinhou, é Jair Bolsonaro, um impressionante entreguista. A pandemia de covid revelou um dirigente dotado de evidente psicopatia, carregado de antipatia pelo povo brasileiro e desprovido de empatia pelos que contavam com ele. Só não entregou o Brasil como colônia para os EUA porque não deu tempo. O governo de Trump acabou antes. E não há de faltar muito para o do capitão acabar também.الله أكبر (Deus é grande, em árabe).

A Terra é redonda

José Horta Manzano

A Terra é redonda. Ainda que alguém possa demonstrar alguma dúvida ‒ fato que sucedeu há alguns anos com um figurão de nossa política ‒, acredite: é redondinha. Como também são os demais planetas e estrelas. A Terra forma figura geométrica com três dimensões. Além da altura e da largura, tem a profundidade.

Na hora de desenhar essa bola numa folha de papel, surge um problema: enquanto a bola tem três dimensões, a folha tem só duas. Como fazer? Por mais engenhoso que seja o artista, a imagem final será necessariamente distorcida.

Na Antiguidade, essa dificuldade não incomodava ninguém. A cartografia estava longe de ser preocupação central da humanidade. O quebra-cabeça de transferir a imagem de uma esfera para um papel plano ‒ desenhando assim um planisfério ‒ só apareceu no século 16, depois que a expedição de Fernão de Magalhães deu a volta ao mundo e comprovou que realmente o planeta era redondo.

Planisfério pela projeção Mercator

Nenhuma representação plana de um corpo esférico será perfeita. Se se conservam os ângulos, as dimensões dos continentes será deformada. E vice-versa: se se privilegiam as dimensões, os ângulos aparecerão deturpados.

Existem dezenas de diferentes projeções, todas elas imperfeitas. A mais utilizada sempre foi a que o matemático e geógrafo Gerard De Kremer criou. O estudioso nasceu em 1512 num vilarejo que hoje faz parte do território belga. Como era costume na época, seu nome foi latinizado para Gerardus Mercator.

A projeção de Mercator é fiel aos ângulos, mas distorce as proporções. Num planisfério desenhado segundo esse método, à medida que as terras se afastam do Equador, as dimensões vão se deformando. As regiões situadas em altas latitudes, próximas aos polos, parecem muito mais extensas do que realmente são. Num planisfério de Mercator, a Groenlândia parece maior do que a América do Sul. Na realidade, o continente sul-americano é oito vezes mais extenso do que a gelada Groenlândia.

Acostumados que estamos a ver planisférios com superfícies distorcidas, ficamos com a impressão de que os países situados longe do Equador são muito maiores do que na realidade são. Canadá, EUA, Rússia e China são grandes, sim, mas não tanto assim.

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crédito: Reddit.com

Para repor as coisas nos devidos lugares, está aqui uma sobreposição do mapa do Brasil e dos EUA, ambos retratados na mesma escala e com a mesma projeção. Embora os dois países sejam grandes, vale lembrar que o território brasileiro é mais extenso que o território contíguo dos Estados Unidos ‒ ou seja, com exclusão do Alasca.

O chinês e os mapas

José Horta Manzano

Você sabia?

O chinês
Entre 1850 e os primeiros anos do século passado, a China viveu tempos confusos. A extensão do território e a precariedade dos meios de comunicação dificultavam o controle e a imposição da autoridade central.

China paintingO Japão e as potências europeias aproveitaram a desordem para tirar uma casquinha aqui e ali. Ao cabo da primeira guerra sino-japonesa, ganha pelo País do Sol Levante, a China teve de entregar Taiwan e outros arquipélagos que interessavam ao vencedor. Os ingleses obtiveram uma concessão de soberania por 99 anos sobre um naco de terra adjacente a Hong Kong.

A Rússia, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro também se aproveitaram daqueles tempos para fazer valer seus interesses políticos e comerciais. Em 1911-1912, com o fim do regime imperial, foi proclamada a república. Mas muita água ainda teve de passar sob as pontes do Rio Yangtzé antes que o país se estabilizasse.

Em 1909, no ocaso do regime imperial chinês, o Brasil recebeu uma comitiva vinda do país oriental. Era encabeçada pelo príncipe Liu She-Shun, representante de Sua Majestade. O intuito da visita era duplo: buscava firmar acordos comerciais e ― principalmente ― tentava convencer o governo dos Estados Unidos do Brazil a aceitar imigração de mão de obra chinesa.

O senhor Liu, recebido com todas as honras devidas a tão ilustre visitante, esteve no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nesta última cidade, deu uma passada pelos cartões postais de então, incluindo uma inevitável visita à Escola Normal ― orgulho do nascente magistério republicano. Foi saudado em francês, como se usava na época. E em francês respondeu.

Um ano antes da visita do príncipe, a primeira leva de imigrantes japoneses já havia aportado a Santos. Pode ter sido porque os japoneses estavam sendo bem avaliados por seus empregadores, pode também ter sido porque a instabilidade da China atrapalhava ― o fato é que o pleito do embaixador chinês gorou. Não se estabeleceu uma corrente contínua de imigração de chineses para o Brasil.

Os mapas
Era grande a cobiça que a China, desorganizada, despertava em potências estrangeiras. Os chineses se ressentiam da situação. Um exemplo é o mapa abaixo, onde países são representados por animais indesejados, cada qual carregando seu estandarte.

Mapa chinês alegórico Princípios do séc. XX

Mapa chinês alegórico
Princípios do séc. XX

As bandeiras são um tanto fantasiosas, assim mesmo dá para distinguir a Itália, Suíça, a Suécia, a Hungria. A águia americana aparece também.

Naqueles tempos, a península indochinesa ― aquela tripa de continente onde hoje estão o Vietnã, o Cambodja, o Laos ― era colônia francesa. No mapa, a França aparece simbolizada por uma rã assentada sobre a Indochina e prestes a agarrar a China. Por que uma rã? Porque os franceses são chamados frogs (=sapo) pelos ingleses. O apelido pejorativo vem do fato de os gauleses terem o surpreendente hábito de comer pernas arrancadas de rãs vivas. Para quem não está habituado, it’s really shocking, é chocante.

Para completar o capítulo geográfico, uma curiosidade. Cada um de nós sente que é o centro do universo. É natural, it’s human nature. Pois o mesmo ocorre com nações e países. Quando desenhamos um mapa-múndi, pomos o nosso país no centro e o resto em volta. Estamos acostumados a ver as Américas à esquerda, a Europa à direita e o Oceano Atlântico no meio. A China e o Japão quase caem do mapa.

Mapa-múndi chinês

Mapa-múndi chinês

Os chineses sofrem do mesmo mal. Sentem, eles também, que são o centro do mundo. Você já viu um planisfério chinês? Veja então a imagem abaixo. A China é localizada no meio do mapa. A Europa fica na extrema esquerda e as Américas se situam na extrema direita, com o Brasil quase caindo do mapa.

Mapa-múndi chinês

Mapa-múndi chinês

Cada um vê o mundo com seus óculos.