As tralhas da princesa

José Horta Manzano

«O bisneto da princesa Isabel quer se livrar de tralha.»

É assim que começa artigo publicado pela Folha de São Paulo de 19 abr 2017. A primeira reação de quem lê tende a ser: «E eu com isso?» As linhas seguintes do texto explicam. Ensinam que «tralha»(*), no caso do descendente da princesa, não tem o significado que normalmente atribuímos ao termo. Tralha de plebeu é móvel com estofado arrebentado, sapato gasto, rádio que não toca, bola furada, tapete rasgado, panela sem cabo, telefone que não fala, copo trincado. Plebeu não chama antiquário pra organizar venda de objetos sem utilidade. Quando nos livramos de velhos objetos, não sai no jornal.

Convite e menu do último baile da Ilha Fiscal, uma das peças leiloadas

Pedro de Alcântara de Bourbon de Orléans e Bragança (o distinto leitor há de perdoar mas, por falta de espaço, omiti sete prenomes) é o proprietário das tranqueiras postas à venda. Na qualidade de legítimo dono, tem direito a dispor delas. Não é aí que reside o pecado.

Acontece que os bens à venda, ainda que incluam sapatos gastos ou copos trincados, são objetos singulares. Cada um deles carrega um pedacinho da história do país. O cardápio do último baile da Ilha Fiscal, ocorrido dias antes do golpe que derrubou o Império, faz parte deles. Uma coroa, serviços de jantar, condecorações também fazem parte da venda coordenada por um antiquário do Rio de Janeiro.

Brasão do Brasil imperial, uma das peças leiloadas

Calcula-se que a venda dos quase 400 lotes atinja um milhão de reais. Um milhão de reais… Num país e numa época em que bilhões mudam de mão em mão viajando dentro de malas e de cuecas, pensar que estamos assistindo à dispersão das poucas peças que restam de nosso (escasso) patrimônio histórico dá muita tristeza. E tudo isso por um milhãozinho.

Não é uma questão de saudosismo, monarquismo ou passadismo. A história de um povo é feita de toda espécie de memória: momentos bons e ruins, vitórias e derrotas, períodos alegres e tristes, dirigentes sublimes e péssimos. Passamos por momentos de euforia e de depressão. Em qualquer país civilizado, o governo já teria negociado com o descendente da princesa para arrematar todos os lotes e integrá-los ao patrimônio nacional. O lugar deles não é na sala de visitas de endinheirados, mas em museu aberto à visitação pública.

Pintura original de D. Pedro II menino, uma das peças leiloadas

Receio que já seja tarde demais. O leilão estava previsto para 19 e 20 de abril ‒ ontem e hoje ‒ num estabelecimento especializado situado em Copacabana, no Rio. Como dizia o outro, a cada quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos quinze anos anteriores. A venda de relíquias de uma época confirma nosso menosprezo a tudo o que constitui a formação da nação.

Se eu fosse rico, compraria o acervo inteiro e o doaria ao museu que melhor pudesse cuidar dele. Meu dinheiro não dá. É pena. Grandes empresas enroladas com a Lava a Jato, que poderiam aproveitar a ocasião para um gesto vistoso, tampouco devem ter caixa sobrando. Os cofres, antes abarrotados, estão sendo rapidamente esvaziados para pagar honorários de advogados.

(*) Tralha
Etimologicamente, a palavra faz parte de extensa família. O parentesco mais próximo é com um artefato medieval chamado tragula, constituído de um gancho amarrado a uma corda. Lançava-se o gancho para agarrar algo e, em seguida, com ajuda da corda, puxava-se de volta o objeto agarrado.

Indo mais longe nas origens, chega-se ao étimo latino trahere (trazer), relacionado com o verbo alemão tragen e com o inglês drag, ambos com sentido de puxar ou arrastar. Trator, extrair, dragar, atrair, tratar e numerosas outras palavras de nossa língua descendem da mesma raíz. Até o trem. O trem da história, que acaba de passar e no qual esquecemos de embarcar.

Memória ameaçada

José Horta Manzano

Dos edifícios antigos que subsistem nas cidades brasileiras, raros são os que têm mais de um século. Poucas casas foram levantadas no século XIX num País escassamente povoado à época. Assim mesmo, dentre as poucas que restam, boa parte anda abandonada ao deus-dará.

Interesses comerciais primam sobre considerações históricas. Um século atrás, as cidades eram bem menores e seu perímetro construído, restrito. As aglomerações cresceram vertiginosamente. As construções mais antigas se encontram hoje, naturalmente, em regiões valorizadas, em pleno centro das metrópoles.

Com a valorização das regiões centrais, o proprietário de construções antigas tende a vendê-las a promotores. Novos edifícios ― altos e modernos ― surgirão dos escombros da História destruída. Para o brasileiro padrão, mais vale um belo prédio moderno de 20 ou 30 andares, dotado de todas as comodidades da vida moderna, do que um velho casarão. Diferentemente do que ocorre na Europa, a velha construção aparece como mancha urbana, excrescência a ser eliminada quanto antes. Afinal, em Miami não há essas velharias.

Crédito: Germano Neto

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto
Crédito: Germano Neto

É triste, mas assim é. E assim seguimos. O grosso de nossa população não aprendeu a conceder o devido valor aos (poucos) testemunhos históricos que nos restam. E, como ninguém consegue dar o que não tem, os adultos de hoje estão desarmados para transmitir às novas gerações a formação e a informação que eles mesmos não receberam. Assim, nossos jovens não dispõem de fontes onde impregnar-se.

Um exemplo noticiado pela Folha de São Paulo de 16 de abril vem a calhar. A reportagem nos informa que a igreja de Nossa Senhora da Conceição, erguida em Ouro Preto na primeira metade do século XVIII (1724), foi obrigada a fechar suas portas ao público visto o risco de desabamento.

Há mais: o templo abriga o túmulo e o Museu do Aleijadinho, o maior escultor barroco que o Brasil conheceu. Cansado de esperar por providências das autoridades pagas para cuidar de nosso escasso patrimônio arquitetural, o próprio vigário tomou a iniciativa de interditar a igreja.Igreja N. Sra. Conceição 2

Há mais ainda: o edifício está tombado como patrimônio nacional desde 1949. Portanto, está há mais de 60 anos sob os cuidados do Poder Público.

A região das cidades históricas das Minas Gerais abriga o coração de nosso patrimônio arquitetônico. Ouro Preto, antiga capital da província, é sua expressão maior. Qualquer aluno de escola média sabe quem foi Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O que nem todos sabem é que, do jeito que vão as coisas, nossos netos perigam apenas conhecer sua obra através de belas fotos, nada mais. Serão fotos digitais e, com um pouco de sorte, em alta resolução. Naturalmente.

Vamos esperar que o tempo, a umidade e os cupins se encarreguem da demolição? Não vai precisar esperar muito.